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LIBERDADE

Tartaruga que passou 40 anos em aquário volta para o mar e nada até o Brasil

10 de julho de 2025
Jorge de Souza
12 min. de leitura
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Foto: Reprodução

Em março de 1984, ao puxar suas redes, pescadores da cidade de Bahía Blanca, no litoral da Argentina, viram que havia uma tartaruga enroscada nelas, e que o animal ainda estava vivo, embora bastante debilitado.

Como era hábito na época, em vez de apenas soltar e devolver o animal ao mar, eles enviaram a tartaruga para um serviço de ajuda, que por sua vez a despachou para um aquário na cidade de Mendoza, na Cordilheira dos Andes, a mais de 1 000 quilômetros de distância do mar.

Era o começo do longo drama que aquela tartaruga – um jovem macho da espécie Caretta caretta, então com cerca de 20 anos de idade e originário do Brasil, como mais tarde seria atestado por pesquisadores – passaria, trancada em um aquário de água doce (e não salgada, como no seu habitat), a fim de ser exibida aos visitantes, e sendo alimentada com ovo de galinha e carne de vaca.

Tormento de 38 anos

O tormento de “Jorge”, como aquela tartaruga foi batizada – e que logo se tornaria a principal atração do aquário da cidade -, durou impressionantes 38 anos, até que um documento assinado por 60 mil pessoas, pedindo que aquele animal fosse devolvido ao mar ou, no mínimo, transferido para um centro especializado em vida marinha, foi acatado pela justiça argentina.

Três anos atrás – e quase quatro décadas após aquela captura acidentalmente no mar -, um avião (cujo voo foi batizado de Jorge212, em sua homenagem) decolou de Mendoza com destino à cidade argentina de Mar Del Plata, levando a bordo a tartaruga Jorge, que ali passou a viver em condições bem melhores em um centro de reabilitação da vida marinha.

O objetivo era avaliar se Jorge, após tanto tempo vivendo dentro em um acanhado aquário, teria condições de voltar para o mar e ser reintroduzido natureza – algo que jamais havia sido tentado com tartarugas após tantos anos em cativeiro.

Readaptação levou 3 anos

O primeiro passo foi fazer Jorge se readaptar à água salgada, o que foi feito com o aumento gradual da salinidade do tanque no qual ele ficava.

Depois, ensiná-lo a capturar a própria comida, algo fundamental na reintrodução de qualquer animal à vida selvagem.

O processo levou três anos, até que os especialistas concluíram que, talvez, Jorge já estivesse pronto para ser devolvido ao mar.

Uma grande operação, que envolveu até a Prefectura Naval Argentina, uma espécie de Capitania dos Portos do país vizinho, então foi montada, para o grande – e tenso – momento da soltura do animal no mar, o que foi feito no último dia 11 de abril.

E com pleno êxito.

Nadou na direção certa

Naquele dia, Jorge foi embarcado em um navio militar e solto no mar, a cerca de 20 quilômetros da costa argentina, voltando a ter contato com um ambiente do qual havia sido afastado por 40 anos.

E, para alegria dos pesquisadores, imediatamente saiu nadando na direção certa: a do Brasil, seu local de origem, já que as tartarugas sempre retornam à mesma região onde nasceram.

“Quando vi que ele nadou para o Norte, tive certeza que Jorge sabia para onde deveria ir. E aquilo me deixou menos aflita”, conta a pesquisadora argentina Laura Prosdocimi, do Museu Argentino de Ciências Naturais, que participou ativamente da readaptação do animal e agora acompanha o seu monitoramento no mar, que está a cargo do Laboratório de Mamíferos Marinhos do Instituto de Investigações Marinhas, o que é feito através de um aparelho rastreador que emite um sinal via satélite cada vez que ele sobe à superfície para respirar. E que ela capta na tela do seu computador.

“Fui uma das poucas pessoas que sempre acreditaram que a reintrodução de Jorge poderia dar certo. E, até agora, está dando mesmo”, diz Laura, pra lá de satisfeita com o resultado da operação.

Caso único no mundo

“Jorge é um caso único inédito no mundo. Nunca uma tartaruga que passou tanto tempo em um cativeiro voltou a viver normalmente no mar”, vibra a pesquisadora Laura.

“Em três anos, conseguimos que ele recuperasse o seu instinto, que quase havia sido perdido. Mas os 20 anos que Jorge viveu no mar antes de ser capturado, deixaram registros, que ele agora está seguindo”, explica.

“A capacidade de Jorge de se readaptar à vida no mar é espantosa”, concorda a também pesquisadora Mariela Dassis, da Universidade Nacional de Mar del Plata, que também participou do projeto.

“Ele é, sem dúvida, um caso científico”, define.

Está no litoral do Rio de Janeiro

Foto: Reprodução

Neste momento, Jorge, que tem cerca de um metro de comprimento, estimados 60 anos de idade e pesa 100 quilos, nada em algum ponto da costa do Rio de Janeiro, mais ou menos na altura de Angra dos Reis, como mostra o seu monitoramento, depois de já ter cruzado todo o litoral do Uruguai e o sul do Brasil.

“Ele está seguindo as correntes de águas mais quentes, como é típico das tartarugas. Até agora, o seu comportamento é 100% normal”, comemora a pesquisadora Laura, que festeja cada dia que Jorge passa no mar.

Já nadou 2 mil km

Em pouco mais de dois meses, Jorge já avançou mais de 2 mil quilômetros, o que não deixa de ser extraordinário para um animal que passou quase 40 anos nadando em círculos, dentro de um acanhado aquário.

Mas seu destino é incerto.

Rumo à Bahia?

Os pesquisadores acreditam que ele possa estar seguindo para a região da Praia do Forte, próxima a Salvador, onde possivelmente nasceu, a fim de procriar com fêmeas da sua espécie e reestabelecer suas áreas de alimentação.

Recentemente, Jorge passou duas semanas nadando ao redor da ilha onde fica Florianópolis, o que deixou a pesquisadora Laura ainda mais satisfeita.

“Isso mostra que ele já sabe muito bem onde e como encontrar alimento, porque, do contrário, teria ficado menos tempo por lá”, explica.

Driblando os riscos

Até agora, em sua extraordinária jornada de readaptação à vida no mar, Jorge vem escapando de todos os riscos que cercam a vida das tartarugas, como os ataques de predadores.

Mas sobretudo aqueles causados pelo homem, como a captura acidental em redes de pesca, a ingestão de resíduos plásticos e o aprisionamento em redes abandonadas no mar, as chamadas “redes fantasmas”, que impedem que as tartarugas subam à superfície para respirar.

“Ele está indo muito bem, especialmente para quem ficou tanto tempo longe do mar”, avalia a pesquisadora Laura, acrescentado que Jorge também está ajudando a ciência a entender um pouco mais sobre o comportamento migratório das tartarugas macho da espécie, porque, ao contrário das fêmeas, os machos passam a vida inteira no mar e não vêm às praias para desovar, o torna difícil rastrear os seus deslocamentos.

Bateria vai acabar

“Estamos aprendendo muito com ele, mas sabemos que será apenas por um tempo, porque logo a bateria do transmissor irá acabar e não teremos mais como monitorar os avanços nem a própria sobrevivência de Jorge no mar”, explica Laura.

“Se tudo der certo, nunca mais teremos notícias dele, porque isso será um sinal de que Jorge retomou sua vida normal no mar. Tudo o que queremos é não voltar a vê-lo nunca mais. Muito menos morto”, conclui a pesquisadora.

Um caso raríssimo

O improvável, mas bem-sucedido, caso da reintrodução da tartaruga Jorge no mar pelos especialistas argentinos após tantos anos de confinamento, é raríssimo, mesmo entre as demais espécies animais do planeta.

Pouquíssimas vezes se tentou a reintrodução de um animal ao seu habitat natural depois de tanto tempo vivendo em cativeiro, devido ao alto risco de fracasso.

No caso de Jorge, o sucesso da operação deveu-se, em parte, à cautela e prudência durante todo o processo, que foi feito de forma lenta e gradual, sem nenhuma pressa, como costumam acontecer nos casos de grande clamor popular, quando as pessoas querem ver o animal ser solto rapidamente.

Fonte: UOL

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