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INSPEÇÃO

Superlotação de animais e más condições gera nova crise no Cetas-RJ

Inspeção do MPF no Centro de Triagem de Animais Silvestres do Rio de Janeiro denuncia superlotação e maus-tratos, e recomenda suspensão do recebimento de novos animais

8 de maio de 2025
Duda Menegassi
14 min. de leitura
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Macacos-pregos são mantidos em gaiolas de quarentena pela falta de espaço nos recintos. Foto: Relatório de Inspeção do MPF/Reprodução

O Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Ibama a suspensão do recebimento de novos animais no Centro de Triagem de Animais Silvestres de Seropédica (Cetas-RJ), no estado do Rio de Janeiro. A decisão foi publicada na última semana, após uma inspeção realizada pela equipe do MPF, que constatou a superlotação de recintos destinados a macacos, jabutis e serpentes, “resultando em maus-tratos”. O órgão ambiental federal tem um prazo de quinze dias para informar acerca das providências adotadas, conforme orientação do MPF.

Apenas em 2024, o Cetas-RJ – o único centro do tipo no estado do Rio – recebeu cerca de 7 mil animais, mais da metade deles oriundos de apreensões de animais vítimas do tráfico.

Em um único recinto, estavam 40 jabutis, detalha o MPF sobre a inspeção realizada no Cetas-RJ no final de abril, em que constatou a superlotação. Ao todo, havia 270 deles no centro. Foram contabilizados ainda 60 macacos-pregos, alguns deles mantidos em gaiolas de “quarentena” pela falta de espaço nos recintos. Havia 51 cobras de diferentes espécies, todas em caixas plásticas e, de acordo com o MPF, sem nenhuma alimentação.

Documentos obtidos com exclusividade por ((o))eco mostram que desde o ano passado, os próprios servidores do Ibama tentam alertar sobre a situação de superlotação no Cetas, a incapacidade de absorver a demanda de animais e a falta de espaço físico para processos de reabilitação animal.

“Atingimos a marca de mais de sessenta macacos-prego, os quais somados a onças-pardas e a queixadas, impossibilitam o acolhimento de outros mamíferos em condições ideais de segurança física (recinto com cambiamento) aos tratadores locais. Acrescentamos a situação de superlotação, a qual pode vir a ser denunciada aos entes de controle como maus tratos animais, vide alta temperatura ambiente, disputa por alimentos e agressão entre os indivíduos”, alerta um despacho do analista ambiental e ex-chefe do Cetas-RJ, o servidor Leandro Nogueira, enviado para o superintendente do Ibama no Rio de Janeiro (SUPES-RJ) no início de abril.

O texto cita ainda o alto número de serpentes peçonhentas sendo resgatadas no estado, o que promoveu o esgotamento do biotério – local onde os animais são conservados para fins científicos – e a escassez de presas para alimentar as cobras.

No mesmo despacho, datado de 7 de abril, o servidor informa a decisão de suspender o recebimento de mamíferos e serpentes na unidade de Seropédica – o que só pode ser oficializado com autorização de Brasília. O despacho foi encaminhado dois dias depois pelo superintendente, Rogério Rocco, à Diretoria de Biodiversidade e Florestas do órgão federal, responsável pela Divisão de Apoio aos Centros de Triagem de Animais Silvestres (Dicetas), mas os animais apreendidos e resgatados continuaram sendo levados ao centro fluminense.

“Simplesmente não temos mais espaço para botar macacos. Hoje eu tenho macaco na quarentena porque não tem lugar para ele entrar e ele acaba ficando numa gaiola menor do que deveria. E nós, servidores, denunciamos isso. O MPF veio aqui depois de uma provocação nossa. Há muito tempo nós estamos pedindo por protocolos de suspensão automática quando você atinge um certo número de animais”, desabafa Leandro.

Ele explica que cabe ao Ibama em Brasília autorizar a suspensão temporária, parcial ou não. E uma das reivindicações dos servidores é que seja acatada a decisão de suspensão ou que esse poder de decisão seja delegado ao superintendente, para facilitar o diálogo.

Em nota enviada ao ((o))eco, o Ibama confirmou o recebimento do ofício do Ministério Público Federal e listou medidas previstas para ampliação de infraestrutura e da equipe do Cetas-RJ, assim como novos aportes de recursos, mas não comentou a paralisação parcial no recebimento de animais, tampouco o pedido anterior feito pelos servidores (leia a nota completa no final da reportagem).

recomendação do MPF, enviada dia 29 de abril, reforça a necessidade de uma suspensão temporária do recebimento de novos primatas e serpentes, “até que haja normalização do fluxo de saída dos animais, bem como estrutura adequada de permanência no Cetas, evitando, assim, o agravamento da situação de maus-tratos constatada”.

O procurador da República, Sergio Gardenghi Suiama, pede ainda uma rápida e adequada destinação aos animais abrigados no Cetas-RJ, em especial macacos-pregos, saguis, serpentes e araras.

“O CETAS IBAMA de Seropédica exerce papel essencial na conservação da fauna silvestre. Contudo, a inspeção constatou quadro de extrema precariedade, carecendo de intervenção urgente para restabelecer condições de funcionamento adequadas, uma vez que há animais (sobretudo os primatas e répteis) em situação de maus-tratos. O Ministério Público Federal acompanhará a implementação das medidas recomendadas”, descreve o procurador no relatório da inspeção.

A unidade em Seropédica é o único Centro de Triagem do Ibama no território fluminense. Cabe ao centro receber animais silvestres por entrega voluntária, resgate ou de apreensão de fiscalização; recuperá-los e destiná-los por meio da soltura na natureza ou encaminhamento para empreendimentos de fauna e pesquisa autorizados.

O MPF reconhece ainda como ponto crítico tanto a falta de Cetas no país, quanto a falta de áreas de soltura para os animais que podem retornar à vida livre.

“O Rio de Janeiro continua até hoje tendo apenas um Cetas, mesmo sendo o estado da federação que está sempre no topo da lista no número de recebimentos de animais no país nos últimos anos. O Rio está sempre nas cabeças, já chegou a receber mais de 10 mil animais num único ano”, ressalta o superintendente do Ibama no Rio de Janeiro, Rogério Rocco. “O que a gente precisa é de mais um Cetas no estado do Rio e de um novo Cetas”, completa o superintendente, lembrando que o centro, inaugurado em 2003, precisa de reformas para modernização e ampliação dos recintos.

A lista de recomendações do procurador da República inclui também a garantia de tratamento veterinário adequado aos animais, com medicamentos e insumos; reformas necessárias à ampliação das áreas de acolhimento e reabilitação; a renovação do convênio com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) que garante o atendimento dos animais por médicos residentes e estagiários de veterinária; a ampliação de áreas de soltura de animais no estado e no país; a instalação de câmeras de segurança em pontos estratégicos para “coibir furtos de animais”; e a regularização da destinação de carcaças de animais mortos.

“O que os servidores batem na tecla é que você precisa ter uma política estadual de Cetas, construir mais Cetas. Ou então você tem que triplicar a capacidade de recintos que a gente tem hoje, para que a gente possa pensar em ser capaz de receber a atual demanda”, completa o servidor do Ibama, Leandro Nogueira.

Inea-RJ e ICMBio também implicados

A recomendação sobre o Cetas-RJ não envolve apenas o Ibama.

Em julho de 2024 foi firmado um Acordo de Cooperação Técnica com o Instituto Estadual do Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (Inea-RJ) para uma gestão compartilhada do centro de triagem.

Na recomendação, o MPF pede ao Inea que conclua, sem demora, a licitação já aberta para cumprimento do Acordo de Cooperação, “inclusive mediante a cessão do número de servidores estipulado, fornecimento de insumos e medicamentos veterinários e apoio logístico”.

Atualmente, o quadro do Cetas-RJ é composto por quatro servidores do Ibama, dez tratadores, quatro seguranças e três auxiliares de serviço geral que atuam na limpeza.

Havia ainda, conforme apurado pelo MPF, apenas uma veterinária e uma bióloga cedidas pelo Inea no local. Uma fração do estipulado pelo Acordo de Cooperação, que lista no mínimo dois médicos veterinários, três biólogos, um zootecnista e um servidor ou terceirizado para cargo administrativo que o órgão estadual deveria ceder ao Cetas-RJ.

O documento pede ainda que o Inea e o Ibama trabalhem juntos na elaboração de uma política estadual de manejo de primatas e serpentes.

Em resposta a ((o))eco, o Inea informou apenas que “há nove meses, passou a integrar a gestão compartilhada do Cetas de Seropédica, centro criado e administrado pelo Ibama. No momento, o local passa por reformulações de políticas e estrutura. O órgão seguirá todas as recomendações feitas pelo MPF”.

Além disso, por estar localizado no interior da Floresta Nacional Mário Xavier, o ICMBio também é responsável pela manutenção da infraestrutura e a preservação da área. Na inspeção realizada pela equipe do Ministério Público Federal foi apontada a precariedade da estrada de acesso e das vias internas da unidade de conservação, a ausência de uma brigada de incêndio estruturada e até mesmo uma invasão de gado na área.

O MPF orientou a gestão da Floresta Nacional para que recupere o acesso ao Cetas, institua, treine e equipe uma brigada de incêndio permanente e promova ações de fiscalização de queimadas e invasão da área protegida para criação de gado.

Em nota enviada a ((o))eco, a Flona Mário Xavier/ICMBio informou que acatará as recomendações do Ministério Público, “adotando as providências cabíveis, sempre respeitando os limites orçamentários, administrativos e legais. Para isso, já está em articulação com o objetivo de viabilizar a recuperação das vias internas”. A contratação de uma brigada de incêndio também estaria prevista, conforme planejamento anual do ICMBio.

Além disso, explicou que estão em curso ações de sensibilização junto à população para evitar o pastoreio ilegal de gado dentro da área protegida.

O prazo de quinze dias para que os órgãos se manifestem completa-se no dia 13 de maio – a próxima terça-feira.

Histórico

Essa é a segunda vez, nos últimos quatro anos, que o MPF intervém junto ao Ibama sobre o mau funcionamento do Cetas-RJ. Em 2021, a Procuradoria da República no Rio de Janeiro abriu uma ação civil pública depois que o Centro ficou mais de um mês sem tratadores para cuidar dos animais, devido a um atraso no processo de licitação (relembre o episódio) que resultou na morte de centenas de animais. Um inquérito civil apura o episódio.

Superlotação e cobras em sofrimento

Durante a inspeção, feita pelo MPF no dia 25 de abril, em conjunto com a Comissão de Defesa e Proteção dos Animais da OAB-Barra da Tijuca, foram contabilizados 60 macacos-pregos no Cetas. Um deles – o recordista – já estava lá há 1.584 dias, o equivalente a mais de quatro anos. Alguns eram mantidos em gaiolas de “quarentena”, mesmo aparentemente saudáveis, há mais de 4 semanas devido a falta de espaço.

De acordo com o relatório de inspeção, a superpopulação inviabiliza o rodízio de recintos e a higienização adequada. Além disso, há apenas seis recintos com cambiamento – área anexa que permite isolar os animais para ações como limpeza – quando seriam necessários pelo menos 12.

Foram registradas ainda 51 serpentes, sendo: 34 cascavéis, 15 corn snakes (espécie exótica no Brasil), uma jararaca e uma jiboia-arco-íris. “Todos os animais peçonhentos estavam mantidos em caixas plásticas sem nenhuma alimentação, aguardando, em sofrimento, morte por inanição devido à ausência de destinação adequada”, denuncia o relatório.

O texto cita ainda duas onças-pardas que aguardavam reintrodução, saguis mantidos em “condições improvisadas” e um grande número de aves, com predominância de araras e presença de espécies exóticas.

Superlotação impulsionada pelo tráfico e “mercado pet”

Em nota enviada a ((o))eco, o Ibama esclarece que o número de animais recebidos no Cetas-RJ cresceu muito nos últimos anos, “principalmente em virtude do elevado número de apreensões de animais silvestres vítimas de tráfico ilegal, bem como de espécimes resgatados ou entregues voluntariamente pela população”.

De acordo com a autarquia, o Centro recebeu um total de 7.793 animais em 2024. Desses, mais da metade (4.346) são oriundos de apreensões, vítimas do tráfico ilegal. Outros 2.670 animais foram resgatados em situações de vulnerabilidade, como queimadas, atropelamentos e acidentes. Uma parcela menor, de 697 bichos, foram entregues voluntariamente pela população e outros 80 advieram “de outras situações”.

“Quanto maior o tráfico, maior a demanda para o Cetas”, explica a nota do Ibama. “Sendo o Centro o único desse gênero no Estado, se faz necessário um trabalho que envolva o governo do Estado do Rio de Janeiro e prefeituras municipais, já que é um dos Estados que mais apresentam crime relacionado ao tráfico de animais silvestres”, completa.

O superintendente do Ibama no Rio, Rogério Rocco, explica ainda que, no caso de macacos-pregos e saguis, há uma dificuldade adicional para destinação, por serem muitas vezes animais com genéticas híbridas que não podem ser soltos na natureza. “Então eles teriam que ir para criadouros ou zoológicos, mas como são animais vulgares, quem quer ter, já tem, não há demanda. E eles vão acumulando e ocupando grandes áreas [no Cetas]”, acrescenta o servidor.

Uma parcela relevante desses animais apreendidos, vítimas do tráfico e comércio ilegal, representam um efeito colateral do “mercado de pets”.

“Macaco virou moda no Rio. Começou a entrar sem parar macaco, porque as pessoas usam para fazer postagens nas redes sociais e monetizar. Independente se a pessoa gosta ou não. E aí depois a pessoa ou descarta ou tem a apreensão por parte do órgão policial”, desabafa o servidor do Cetas-RJ Leandro Nogueira, em conversa com ((o))eco sobre o alto número de macacos-pregos no centro.

A Sociedade Brasileira de Primatologia (SBPr) em sua campanha “Macaco não é PET” tenta conscientizar as pessoas sobre os riscos e impactos envolvidos ao trazer os macacos – mesmo que de origem legalizada – para dentro de casa.

As serpentes também são alvos comuns do fascínio e desejadas como “animais de estimação”, nem sempre pelos caminhos legais. A corn snake, ou cobra-do-milho, nativa dos Estados Unidos, por exemplo, é uma das espécies mais comuns a virarem “pets”.

Resposta do Ibama

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informa que recebeu ofício do Ministério Público Federal em referência às instalações e ao funcionamento do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas-RJ), situado em Seropédica, na Baixada Fluminense. Trata-se da única unidade de atendimento a animais silvestres do Estado do Rio de Janeiro.

O número de animais recebidos no Cetas-RJ cresceu muito nos últimos anos, principalmente em virtude do elevado número de apreensões de animais silvestres vítimas de tráfico ilegal, bem como de espécimes resgatados ou entregues voluntariamente pela população.

Dos 7.793 animais silvestres recebidos em 2024 no Cetas-RJ:

4.346 foram apreendidos, vítimas do tráfico ilegal;

2.670 foram resgatados em situações de vulnerabilidade (queimadas, atropelamentos, acidentes etc.);

697 foram entregues voluntariamente pela população;

80 advieram de outras situações.

Essa alta quantidade tem relação direta com o recrudescimento de operações de fiscalizações do Ibama e de outras entidades ambientais e policiais no Estado do Rio de Janeiro, a fim de combater o tráfico ilegal de animais silvestres, atividade criminosa e lucrativa, que, lamentavelmente, tem se intensificado. Quanto maior o tráfico, maior a demanda para o Cetas.

Em 2022, o Cetas-RJ passou por reforma e ampliação de sua estrutura, o que possibilitou um aumento da capacidade de atendimento da unidade. O trabalho do Cetas-RJ vai além do acolhimento dos animais em situação de vulnerabilidade, envolvendo uma equipe multidisciplinar, em um ciclo de trabalho complexo. No centro, são oferecidos diversos serviços, dentre os quais: análise das condições de saúde, tratamentos, eventuais cirurgias, adaptações ambientais, reabilitações de animais, solturas no habitat e/ou destinações para espaços de conservação de espécies, como zoológicos ou santuários de fauna.

Sendo o Centro o único desse gênero no Estado, se faz necessário um trabalho que envolva o governo do Estado do Rio de Janeiro e prefeituras municipais, já que é um dos Estados que mais apresentam crime relacionado ao tráfico de animais silvestres.

Ciente dessa situação, estão sendo tomadas providências no sentido de ampliar o atendimento à fauna silvestre fluminense, conforme abaixo:

– Em 2024, foi assinado acordo de cooperação técnica entre o Ibama e o Instituto Estadual do Ambiente (INEA-RJ) para a gestão do Cetas-RJ, com perspectiva de dobrar o tamanho da equipe até junho de 2025;

– A Universidade Rural do Rio de Janeiro cedeu uma área de 10 mil hectares para a construção de uma nova unidade do Cetas-RJ. O local será muito mais amplo, acessível e terá instalações adequadas à demanda. A construção está sob responsabilidade do governo estadual;

– Está prevista a construção de duas unidades de acolhimento e reabilitação de animais no âmbito estadual;

– Recentemente, o município do Rio de Janeiro recebeu recursos, por meio de emenda parlamentar, para a construção de um Cetas na capital do estado.

Sobre a Rede Cetas

O Ibama possui 24 Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) no país. Os locais desempenham papel essencial na conservação da biodiversidade da fauna silvestre brasileira, realizando a recepção, a triagem, a identificação, a recuperação e a reabilitação de animais silvestres oriundos de entregas voluntárias, resgates ou apreensões relacionadas ao tráfico. O objetivo é devolver à natureza os milhares de animais que são retirados de seus habitats.

Fonte: O Eco

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