Professor de direitos animais na Universidade Harvard, o advogado Steven M. Wise, referência em primatologia e inteligência animal, começou a se interessar pelos direitos animais depois de ler o livro “Animal Liberation”, de Peter Singer, lançado em 1975. Em 2000, Wise publicou o livro “Rattling the Cage: Toward Legal Rights for Animals”, que também se tornou uma referência para o movimento pelos direitos animais no que diz respeito às vias legais. Em 2007, ele fundou o Nonhuman Rights Project, antigo Center for the Expansion of Fundamental Rights, que oferece assessoria jurídica para movimentos em defesa dos animais em vários continentes.
Em 28 de abril de 2015, Steven M. Wise publicou no Foreign Affairs o artigo “Animal Rights, Animal Wrongs: The Case for Nonhuman Personhood”, em que ele aborda a diferenças entre direitos animais e bem-estar animal, a importância da atribuição de direitos aos seres não humanos, a inteligência dos animais, as distinções entre direitos animais e direitos humanos e também o papel do Nonhuman Rights Project na garantia dos direitos animais por vias legais. Leia o artigo traduzido na íntegra:
No mundo todo, o que a mídia geralmente se refere como “o movimento dos direitos animais” está decolando. Protestos em massa, lobby intenso, os litígios e os tratados preliminares levaram a uma nova legislação a nível nacional, estadual e municipal. Agora é proibido usar grandes macacos em pesquisa biomédica, são proibidas touradas na Catalunha, e também operar fazendas industriais e matadouros sem aderir às regras mais estritas que regem o tratamento e as condições de vida dos animais. No entanto, com algumas exceções, esses esforços não são verdadeiramente sobre “direitos animais”, mas sim “bem-estar animal”.
Um dos motivos dessa diferença é que em todo mundo os animais são considerados “coisas jurídicas”, incapazes de terem direitos e tratados como artigos de propriedade. Em contraste, os seres humanos são considerados “pessoas jurídicas”, possuindo valor intrínseco e capacidade para um número infinito de direitos legais como proprietários de “coisas jurídicas”. Outra razão é que o termo “animal” engloba o enorme reino biológico animalia, que compreende mais de 1,25 milhões de espécies conhecidas (há mais a serem descobertas), que se enquadram em um vasto contínuo de consciência, senciência, inteligência geral e autonomia. Inclui 60.000 vertebrados: 5.500 mamíferos, 10.000 aves, 6.200 anfíbios, 30.000 peixes e 8.200 répteis. Os mais de um milhão de invertebrados conhecidos incluem cerca de 950.000 variedades de insetos, 81.000 moluscos e 40.000 crustáceos.
Em uma extremidade desse espectro de capacidade mental e consciência estão animais como esponjas, medusas e anêmonas marinhas que os cientistas acreditam que é improvável que tenham consciência ou capacidade de sentir dor ou sofrer. Portanto, é improvável que sejam assuntos adequados da legislação de bem-estar animal (que se concentra na prevenção de dor e sofrimento desnecessários), embora possam ser protegidos por leis ambientais ou de conservação. Em algum ponto ao longo desse contínuo, no entanto, um nível de consciência e senciência se tornou evidente. Um grande número de animais se enquadra nesta categoria, como bois, vacas e ovelhas.
Esses animais são objetos da legislação de bem-estar desde o início do século XIX, quando os primeiros movimentos de bem-estar animal no Reino Unido buscavam acabar com práticas cruéis como espancamentos e outros tratamentos desumanos. Desde então, o movimento dos direitos animais tem lutado para avançar ainda mais em benefício desses animais. Em 2000, um grupo internacional de organizações de bem-estar animal propôs à Declaração Universal sobre o Bem-Estar Animal (UDAW), que buscava reduzir a crueldade desnecessária em relação ao sofrimento dos animais. Em 2005, foi montado um comitê diretivo intergovernamental para melhorar as chances de adesão à UDAW. A declaração recebeu subscrições de inúmeras associações veterinárias, da Organização Mundial da Saúde Animal, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura [FAO], e do Conselho da União Europeia. Os valores organizativos da UDAW abrangem os princípios que contagiaram a legislação anticrueldade do século XIX.
Os animais no outro contínuo final – incluindo grandes macacos, cetáceos (baleias, golfinhos e botos), e elefantes – possuem uma consciência complexa e autoconsciência, uma senciência requintada, uma vigorosa inteligência geral e uma poderosa sensação de autonomia. Eles, também, há muito tempo receberam alguma proteção contra a crueldade desnecessária. Mas os avanços científicos durante o último meio século demonstraram que os seus níveis avançados de cognição os deixam inadequadamente protegidos por legislação anticrueldade ou similar.
Por exemplo, os chimpanzés podem refletir sobre seus pensamentos. Eles têm memórias poderosas, podem antecipar e se preparar para o futuro, e têm até um senso de agência moral – eles isolam aqueles que violam as normais sociais e respondem negativamente a situações injustas. Quando participam de jogos econômicos, os chimpanzés fazem espontaneamente justas ofertas e têm uma simples compreensão dos números. Eles possuem cultura simbólica e social. Por exemplo, por meio de uma disciplina conhecida como “arqueologia dos chimpanzés”, descobriu-se que há cerca de 4.300 anos os chimpanzés viviam em florestas tropicais na Costa do Marfim e usavam ferramentas de pedras para quebrar castanhas. Eles passaram essa técnica para mais de 200 gerações de chimpanzés. Esses e outros avanços científicos catalisaram um novo e crescente “movimento dos direitos animais’, que exige direitos legais para proteger os interesses fundamentais desses animais.
O Nonhuman Rights Project, que lidero, é um pioneiro quando se trata de promover os direitos animais. Estamos trabalhando com grupos jurídicos em outros três continentes para ajudá-los a alcançar a personalidade jurídica para “animais não humanos”. Atendemos os primeiros casos de direitos animais nos Estados Unidos em 2013, em que argumentamos que quatro chimpanzés – Tommy, Kiko, Hercules e Leo – mantidos ilegalmente por seus supostos proprietários tinham o direito de serem libertados de acordo com um recurso de habeas corpus de direito comum (uma das vantagens de um habeas corpus de direito comum é que isso nos permite apresentar um processo em nome de quem está sendo preso). Nosso objetivo é garantir que esses e outros animais autônomos e autodeterminados sejam declarados como pessoas jurídicas, pelo menos quando se trata de detenção ilegal.
As raízes do movimento dos direitos animais não estão na legislação anticrueldade do século XIX; eles se aproximaram dos movimentos antiescravistas mundiais que começaram no século XVIII e floresceram no amplo movimento internacional de direitos humanos do século XX. Essas exigências dos novos defensores dos direitos animais por direitos legais fundamentais para os não humanos são muitas vezes mal interpretadas como “direitos humanos” para animais não humanos. Mas isso não é correto; os novos profissionais dos direitos animais reconhecem que os sujeitos não são humanos. Estamos exigindo direitos legais adequados aos níveis de cognição que os cientistas conseguem determinar por meio do seu trabalho com animais não humanos, tanto na natureza quanto em cativeiro. Portanto, os chimpanzés têm direito a “direitos de chimpanzés”, elefantes a “direitos de elefantes” e orcas a “direitos de orca”.
O Nonhuman Rights Project passou os últimos anos determinado em qual jurisdição apresentaria seus casos iniciais, finalmente se estabelecendo no Estado de Nova York. Identificamos sete chimpanzés e decidimos apresentar processos em nome de dois. Mas os dois morreram, assim como um terceiro. Demos continuidade ao nosso caso em nome de quatro sobreviventes.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos fala, entre outras coisas, à dignidade da humanidade, direito a direitos iguais e inalienáveis, o reconhecimento como pessoa jurídica, com direito à vida, liberdade, igualdade e segurança. Não existe uma razão adicional para que os animais não humanos autônomos e autodeterminados não possuam também direitos iguais e inalienáveis, o reconhecimento como pessoa jurídica, direito à vida, liberdade, igualdade e segurança. Ao longo dos séculos, nós, seres humanos, desenvolvemos lenta e dolorosamente um núcleo de valores e princípios quase universais destinados a proteger os nossos interesses mais fundamentais. É tempo de reconhecer que compartilhamos o planeta com outras espécies com similar interesses fundamentais, e que a nossa falha em proteger esses interesses prejudica os animais e subverte os valores e princípios fundamentais que protegem os nossos próprios interesses.