Farra, substantivo feminino que significa folia, festa alegre a animada, por alguns considerada sinônimo de baderna, diversão, gandaia e, por extensão, brincadeira, zombaria e comemoração com alegria.
Em face da definição do vernáculo pátrio se espera tratar-se de um momento de regozijo entre os envolvidos. Que a diversão, a festa e a alegria sejam para todos.
Será que a definição do verbete permaneceria a mesma se o ponto alto da festa fosse provocar terror e pânico em alguém? Agora imagine a preparação para a festa… Imagine que a preparação envolve deixar esse alguém em clausura, com fome, com sede e depois submeter esse mesmo alguém a situações e momentos de tortura, violência física e psicológica que, ao fim, terá sempre o mesmo destino, a morte. Te parece divertido? Alegre?
A atividade da farra do boi, historicamente, teria sua origem nos Açores e com a imigração açoriana para o Estado de Santa Catarina, a prática teria sido disseminada. Em terras açorianas, pelos relatos existentes, o boi seria engordado, se fazia a farra e se abatia o animal para o consumo da comunidade no domingo de páscoa. Hoje, no Brasil, temos um outro tipo de atividade (não que aquela se justificasse). O que ocorre hoje nas áreas da farra do boi é, em regra, a retirada do boi criado a pasto – boi manso – na semana da páscoa para submetê-lo à prática de tortura. O preparo do animal consiste em deixa-lo sem alimentação e a soltura se dá em área escolhida pelos farristas já a partir da quinta-feira santa. Após a soltura inicia-se a perseguição. Esse ano, já houve registro de ocorrência e ação da Polícia Militar do Estado de Santa Catarina três semanas antes da Páscoa. Os policiais encontraram um boi sem brinco de identificação, com sinais de cansaço e agitado. Os farristas fugiram e os policiais acionaram o órgão público competente para a destinação do animal. A perseguição na farra do boi, após horas sem fim de medo e de dor, sempre termina em morte.
No mês de junho de 1997, após uma movimentação intensa de grupos de proteção animal, foi julgado o Recurso Extraordinário n. 153.531 originário do Estado de Santa Catarina. O julgamento versava acerca da necessária proibição da prática da farra do boi, no Estado de Santa Catarina, por ser atentatória a norma constitucional de vedação de crueldade aos animais. Na decisão, o Ministro Relator Francisco Rezek, afirma que “tardei a submeter este caso ao julgamento da Turma, na esperança de que isso se resolvesse sem uma decisão judiciaria, de que ficasse claro que o Poder Público tomou providencias no sentido de coibir qualquer ação agressiva à lei fundamental, e de que sobrou uma autentica manifestação cultural, eliminados todos os aspectos cruéis ou reprováveis. Infelizmente isso não aconteceu. A cada ano do calendário a prática se caracterizou mais e mais como cronicamente violenta, e não apenas pontilhada de abusos tópicos”. E o Ministro Relator continua e defende que “não posso ver como juridicamente correta a ideia de que em prática dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação cultural com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel para com os animais, e a Constituição não deseja isso”. A decisão em 1997 foi que “claros os fatos, como se passam a cada ano, essa prática se caracteriza como ofensiva ao inciso VII do art. 225 da Constituição”.
O inciso VII do §1º do artigo 225 da Constituição Federal traz em si uma regra de vedação de crueldade contra os animais. Uma tarefa estatal, em que o Estado deve coibir práticas – quaisquer que sejam – que submetam animais à crueldade. Essa regra não admite ponderação. Portanto, não, de fato, a Constituição não deseja a crueldade. A Constituição veda qualquer prática que submeta animais à crueldade. A lei infraconstitucional disciplina como crime ambiental a crueldade contra os animais não-humanos. E a farra do boi? A farra do boi já foi submetida a análise do Supremo Tribunal Federal e foi considerada cruel, portanto, inconstitucional. Para além disso, a prática se insere no crime de maus-tratos.
Estamos em 2017, 20 anos depois da publicação da decisão do STF considerando a prática da farra do boi inconstitucional, e do começo do ano até o feriado da Páscoa, segundo dados da Polícia Militar de Santa Catarina, já foram atendidas 140 ocorrências de farra do boi. Segundo o relatório do órgão, há um significativo aumento de ocorrências se levarmos em consideração o mesmo período do ano passado. A Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (CIDASC) também recolheu um numero maior de animais.
Nesse ano, dois animais se tornaram símbolo dessa luta, de uma luta de ausência de respeito à Constituição, de ausência de respeito à lei, de ausência de respeito à vida. A Lhuba e o Spas foram regatados por protetores de animais e estavam sendo devidamente tratados. Ambos os animais possuíam (sim, possuíam) furo nas orelhas, sinal de que ali havia um brinco de identificação, sinal de que tinham dono, sinal de que eram tratados.
Contudo, como esses brincos foram retirados de seus corpos quando foram jogados aos homens nos coliseus das ruas farristas, se tornaram bois da farra, bois sem dono, bois sem segurança para a saúde pública. A CIDASC que recolheu mais de 14 animais nesse ano de comemoração dos 20 anos de proibição da prática da farra do boi em todo o território nacional, matou Lhuba e Spas sem que eles tivessem direito a um exame sequer para provarem que não eram perigo algum à essa sociedade em que vivemos. Em comunicado oficial a CIDASC afirma que “os animais sem origem comprovada no Estado de Santa Catarina, que representam risco sanitário, devem ser abatidos (…)”. a Lhuba e ao Spas não foi dado o direito de comprovarem que não representavam risco sanitário.
20 anos depois que o Supremo Tribunal Federal considerou a prática inconstitucional, a farra do boi aumenta em números e aumenta em mortes… Para as Lhubas e os Spas a morte é sempre certa. Ou morrem nas mãos dos farristas ou morrem nas mãos de um Estado que não consegue enxergar a vida para além do animal-humano. Quanto tempo mais…
* Fernanda Medeiros é advogada, Mestre em Direito (PUCRS), Doutora em Direito (UFSC), Pós-Doutora em Direito Ambiental (UFSC), Professora da Escola de Direito da PUCRS, Professora do Mestrado em Direito do Unilasalle e autora da obra Direito dos Animais (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013).