EnglishEspañolPortuguês

ADAPTAÇÃO

Soluções baseadas na natureza podem inspirar medidas de adaptação às mudanças do clima

Guia brasileiro lançado na COP29 destaca intervenções para aumentar a resiliência de cidades costeiras

8 de dezembro de 2024
Renata Fontanetto, da Revista Pesquisa FAPESP
13 min. de leitura
A-
A+
Na baía de Sydney, Austrália, paredão vivo com painéis que imitam o relevo de costões rochosos estimula a proliferação de espécies marinhas. — Foto: Alex Goad / Living Seawalls

Quem anda pela reserva Sawmillers, ao norte da baía de Sydney, na Austrália, pode notar um mosaico de diferentes módulos arredondados de concreto justapostos e instalados nas paredes construídas pelo homem para separar a terra firme do mar. A forma de cada painel lembra a de um biscoito gigante, com cerca de meio metro de altura e de comprimento e pouco mais de 10 centímetros de espessura. Os módulos apresentam cinco tipos de relevo em sua face voltada para a água. Podem ter buracos, reentrâncias e ranhuras de diferentes tamanhos. O mosaico de painéis, comumente chamado de paredão vivo, busca imitar a textura complexa dos costões rochosos naturais, em contraste com as linhas retas e lisas dos muros artificiais edificados na beira-mar.

Estudos feitos nessa área de Sydney indicam que há um aumento de mais de um terço no número de espécies marinhas, como algas, crustáceos e outros invertebrados, nas localidades em que os paredões vivos foram instalados em relação aos pontos com muros artificiais convencionais. Segundo artigo publicado em 2022 no periódico Philosophical Transactions of the Royal Society, após dois anos de monitoramento, havia uma maior proliferação de espécies perto dos painéis não lisos, com buracos e texturas que propiciam a formação de poças da maré, onde as temperaturas eram mais amenas.

Os paredões vivos são uma das intervenções propostas pela ecoengenharia, que compreende soluções baseadas na natureza (SbN) – ou seja, um conjunto de inovações, obras ou estratégias que podem aumentar a capacidade adaptativa e a resiliência de áreas urbanizadas diante dos riscos associados às mudanças climáticas, além de promover, na maior parte dos casos, ganhos sociais, ambientais ou econômicos. O biólogo Ronaldo Christofoletti, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lançou um guia tecnocientífico com SbN que podem ser aplicadas no Brasil durante a 29ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 29), que ocorreu entre 11 e 22 de novembro em Baku, capital do Azerbaijão.

No documento, intitulado “Cidades Azuis”, a ecoengenharia marinha aparece como uma das medidas recomendadas para ambientes costeiros, ao lado de outras duas: a restauração e proteção de hábitats naturais, como dunas, manguezais e recifes de corais, e o realinhamento da costa, técnica que redefine a linha costeira, geralmente com um recuo planejado, para controlar erosões e inundações. O guia também destaca outras oito SbB que podem ser empregadas tanto em cidades litorâneas como do interior. O trabalho foi produzido pela Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica, coordenada pela Unifesp, pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e pela Unesco, em parceria com a Fundação Grupo Boticário.

Com financiamento da FAPESP, Christofoletti e o engenheiro de materiais Rafael Pileggi, da Universidade de São Paulo (USP), vão testar o impacto dos paredões vivos criados na Austrália no litoral paulista por meio de um projeto conjunto com pesquisadores da Universidade de Nova Gales do Sul (UNSW), de Sydney. Eles estão finalizando uma parceria com a Autoridade Portuária de Santos e a prefeitura da cidade para, no início de 2025, concretizar um plano de trabalho. “Vamos começar os testes práticos no maior porto da América Latina e, consequentemente, na região de Santos, cujo litoral é extremamente endurecido”, explica Christofoletti.

Endurecimento do litoral é o nome dado pelos pesquisadores ao processo de substituição da paisagem natural da costa por infraestrutura construída, como marinas, diques, portos, estacas e paredões. Essas intervenções da chamada engenharia cinza diminuem a complexidade e a riqueza do hábitat marinho, substituindo ambientes complexos por superfícies mais lisas e homogêneas.

O biólogo é um dos autores de um artigo publicado em junho de 2024 na revista Anthropocene Coasts que avaliou a extensão das estruturas artificiais na costa paulista e a ocupação em terrenos de baixa elevação, de até 5 metros de altitude. Por meio de imagens aéreas, foi possível perceber que a porção mais central do estado, principalmente em Santos, Guarujá e São Vicente, é a mais afetada pelo processo de urbanização, seguida pelo litoral norte e, depois, o sul. “Quanto menos endurecida, mais resiliente é a cidade à mudança do clima”, diz Christofoletti.

Os buracos e reentrâncias nos paredões vivos funcionam como um abrigo, com clima mais ameno, às espécies marinhas que vivem perto da costa. “Nesses compartimentos com água acumulada, ocorre a formação de um micro-hábitat com temperaturas até 10 graus Celsius mais baixas do que a registrada em paredões sem ecoengenharia”, explica a bióloga brasileira Mariana Mayer-Pinto, da UNSW, em Sydney, uma das líderes do projeto australiano. “No contexto das mudanças climáticas, isso significa que as espécies conseguem se proteger mais nos paredões vivos em situações de calor extremo.”

Outro ponto positivo é que a implementação desses painéis com relevo pode ser feita sob medida para um objetivo específico, como permitir a proliferação de plantas marinhas que capturam carbono e ajudam a regular o clima. Os paredões vivos, que têm vida útil prevista de 20 anos, começaram a ser instalados em Sydney em 2018 e hoje estão presentes em 11 pontos costeiros da Austrália, além de Singapura e no País de Gales.

No vocabulário das mudanças climáticas, resiliência é a capacidade que um sistema tem de se recuperar e manter seu funcionamento após um desastre ou distúrbio. Um dos caminhos para aumentar a resiliência é implementar medidas de adaptação que busquem diminuir os impactos das mudanças do clima. Um artigo de revisão publicado em outubro de 2024 na revista Science of the Total Environment por pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e organizações independentes sugere que as SbN podem dobrar a resiliência das cidades.

“Mas, antes de implementar uma SbN, é necessário considerar os cenários climáticos previstos para o futuro pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [IPCC]”, comenta a oceanógrafa Aline Martinez, uma das coordenadoras do guia tecnocientífico, que faz pós-doutorado na Unifesp. “A nova Lei nº 14.904, de junho de 2024, que estipula diretrizes para os planos de adaptação das cidades às mudanças climáticas, faz essa advertência.” Isso significa, por exemplo, levar em conta o aumento do nível do mar e o da temperatura média da atmosfera terrestre na hora de conceber um projeto de intervenção urbana.

Para incluir as SbN nos planos municipais, primeiro esses instrumentos precisam existir. De acordo com dados de 2023 da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 370 dos 5.570 municípios brasileiros têm legislação específica ou planos de mitigação ou adaptação às mudanças do clima. A plataforma AdaptaBrasil, do MCTI, aponta que cerca de 3,6 mil municípios têm capacidade adaptativa baixa ou muito baixa diante de desastres geo-hidrológicos, como enxurradas, inundações, alagamentos e deslizamentos de terra.

“A adaptação ocorre essencialmente no território local”, afirma o agrônomo Jean Ometto, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), integrante da equipe do AdaptaBrasil. Segundo o pesquisador, o mapeamento dos riscos e vulnerabilidades de uma cidade não é trivial e esse tipo de preocupação foi incorporado recentemente à gestão pública do país, após a criação da Política Nacional sobre Mudança do Clima em 2009.

“Um plano de adaptação deve priorizar dois grandes eixos. O primeiro é a redução das vulnerabilidades para grupos específicos da sociedade: mulheres, crianças, pessoas negras e idosos”, diz Ana Toni, secretária nacional de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). “O segundo diz respeito à preparação para um mundo cada vez mais quente. Nesse quesito, as SbN têm grande importância.” De acordo com o MMA, deverá ser lançado nos próximos meses o plano Adapta Cidades, que prevê a assistência a mais de 240 municípios na elaboração de seus planos de adaptação durante 2025.

“Faltam planos de ação em cidades menores e com menos recursos e, de forma complementar, as SbN precisam ser pensadas para cidades mais vulneráveis à emergência climática, como as costeiras”, pondera a arquiteta e urbanista Deize Sanches, que faz pós-doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

“A agenda de adaptação no Brasil está muito atrasada”, avalia a engenheira civil Denise Duarte, também da FAU-USP. “Tanto em termos de desenvolvimento científico quanto de implementação de ideias e soluções.”

Duarte investiga a questão do conforto térmico e ambiental, com foco na adaptação ao calor. “Nada substitui a árvore plantada no chão”, comenta a engenheira. “Toda iniciativa de restauração e manejo de áreas verdes já existentes, ou mesmo a criação de novas, é bem-vinda”. A pesquisadora participa do projeto europeu Conexus, que, desde 2020, aproxima cidades latino-americanas e europeias para promover a implementação e estudos sobre SbN. São Paulo é a representante brasileira na iniciativa.

Um desses trabalhos tem sido feito em duas grandes áreas verdes da capital paulista: o Parque do Ibirapuera e o Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, mais conhecido como Parque do Estado. “Instalamos sensores em árvores para medir o quanto esses parques absorvem de dióxido de carbono [principal gás do efeito estufa] e o quanto conseguem resfriar a atmosfera”, explica o biólogo Giuliano Locosselli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, um dos integrantes da iniciativa. O monitoramento ainda não terminou, mas a ideia é usar os dados coletados para criar políticas públicas com o objetivo de pensar florestas funcionais para a cidade. Elas seriam espaços otimizados que poderiam prover mais serviços ecossistêmicos de acordo com as necessidades locais, como a captura de carbono e o resfriamento da temperatura.

Em que pese todo o esforço para avançar na pesquisa e no desenvolvimento de soluções, um fato é certo: o tempo para as cidades adotarem SbN é cada vez mais curto. Segundo o mais recente relatório do IPCC, conforme o clima vai ficando mais quente, a efetividade de algumas soluções pode diminuir. Por isso, o IPCC recomenda que as medidas de adaptação agora implantadas também incluam um planejamento a longo prazo. Para aumentar a chance de sucesso das SbN, os especialistas fazem duas recomendações: contemplar, desde o início, as necessidades das comunidades locais e implementar um sistema de avaliação para mapear o quanto a solução baseada na natureza deu certo ou não.

Poucos projetos no Sul global: Europa concentra a maioria das intervenções urbanas inspiradas em soluções baseadas na natureza

No cenário global de soluções baseadas na natureza (SbN), existe um viés: o conhecimento gerado a partir da pesquisa e da prática está concentrado no Norte global. Artigo de pesquisadores espanhóis publicado em janeiro de 2023 na Nature Sustainabilty mapeou 216 intervenções desse tipo em 130 cidades de 55 países e constatou que 63% dos projetos são desenvolvidos na Europa. As Américas respondem por 13% das intervenções, que se concentram na América Latina e no Caribe. A África abriga esse mesmo percentual de projetos, seguida pela Ásia (7%) e Oceania (2%).

Mais detalhado, um relatório de 2013 do Banco Europeu de Investimento e da Comissão Europeia mapeou um número ainda maior de iniciativas de SbN no continente: 1,3 mil projetos. As soluções tentam mitigar problemas relacionados a deslizamentos de terra, enchentes, excesso de chuvas, ondas de calor, secas e perigos costeiros.

No Brasil, um registro do Observatório de Inovação para Cidades Sustentáveis (Oics), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), aponta um total de 40 soluções – a maioria nas regiões Sudeste e Sul. No entanto, pesquisadores afirmam que esse número pode estar subdimensionado.

Uma dessas intervenções é o Parque Orla Piratininga Alfredo Sirkis, em Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, inaugurado em setembro de 2024. Projeto da prefeitura local, o empreendimento abrange uma área de 680 mil metros quadrados e custou R$ 100 milhões. Numa margem de 10,6 quilômetros de extensão, o parque usa um mix de SbN, como alagados construídos para filtrar as águas que aportam na lagoa de Piratininga. Em novembro, o projeto foi considerado um dos três melhores na categoria Energia e Meio Ambiente pelo concurso anual espanhol World Smart City Awards.

Outras SbN mapeadas pelo Oics foram implantadas em Buenos Aires, na Argentina, e em Medellín e Bogotá, na Colômbia. O jardim vertical no edifício residencial Santalaia, localizado nesta última cidade, é um desses projetos. A intervenção promove o plantio de espécies vegetais, geralmente trepadeiras, em paredes, muros ou fachadas da edificação para aumentar o conforto térmico, a umidade e reter água da chuva. Em Buenos Aires, destaca-se a Reserva Ecológica Costanera Sur, no bairro de Puerto Madero. Com 350 hectares, o espaço reúne a maior biodiversidade da cidade, regula o clima e confina as águas pluviais.

Fonte: Um Só Planeta

    Você viu?

    Ir para o topo