Por Walkyria Rocha (da Redação)
Mais de 100 mil cães vivem nas ruas de Istambul, a cidade mais populosa da Turquia. Os cães são uma presença constante há séculos e, nos últimos tempos, se transformaram em um grande dilema para a cidade. No ano passado, o Ministério para Floresta e Água da Turquia, propôs uma lei para enviá-los para “parques de vida selvagem” na periferia de Istambul. Ahmet Senpolat, um advogado estabelecido em Istambul, que dirige a Federação de Direitos Animais da Turquia (HAYTAP), e outros advogados protestaram e a lei foi entregue.
O Projeto de Lei 1599, de acordo com o Ministério para Floresta e Água da Turquia, tem por objetivo “fazer com que os animais vivam. O intuito é prevenir os maus tratos aos animais, tornar clara as responsabilidades institucionais e fortalecer os mecanismos de tutela de animais”.
Os advogados da causa animal argumentam que a proposta de “parques como habitat natural” são basicamente “campos de concentração” para animais. Muitos cães abandonados já vivem em áreas arborizadas do nordeste de Istambul onde eles lutam para sobreviver, de acordo com Deutsche Welle. Enviar os cães para ainda mais longe da cidade é o equivalente à sentença de morte, porque “provavelmente eles não terão alimento suficiente, e os cães podem ferir-se uns aos outros devido à fome”, diz a voluntária, Semra Tecimen.
Ela e outros defensores também opõem-se à proposta de lei, uma vez que, assustadoramente, lembra um horrível incidente anterior.
No século dezenove, o Sultão Abdulaziz decretou que os cães deveriam ser pegos e deportados para Hayirsiz, uma ilha estéril, de penhascos íngremes no Mar de Marmara. Sivriada, uma pequenina ilha para onde os governantes bizantinos baniam os criminosos, virou manchete em 1911, quando o governador de Istambul soltou dezenas de milhares de cães lá. Um cartão postal amarelado mostra centenas de cães na praia, seus latidos podiam ser ouvidos a grandes distâncias. No entanto, um terremoto ocorreu logo depois e foi tido como um sinal do descontentamento divino, e os cães foram trazidos de volta.
Como Senpolat explica, os cães de Istambul são animais sociáveis, que têm vivido junto aos humanos por muito tempo. Algumas pessoas colocam comida para eles e até camas de papelão. Os cães e os gatos também sobrevivem do lixo que os moradores deixam na calçada, embora o advento dos containers de metal tenham tornado tudo mais difícil. Dizem que alguns cães até compreendem os sinais de trânsito e param na luz vermelha.
Ter a guarda de cães é um fenômeno relativamente recente na Turquia e as pessoas tendem a preferir a raça pura (que é visto como um símbolo de status) àqueles que vivem nas ruas. Um residente não-turco de Istambul observou que os cães costumam ficar perto das pessoas e até dependem delas, mas não vivem diretamente com elas.
Ainda que, tecnicamente falando, a responsabilidade pelos cães seja do governo local, voluntários como Tecimen, rotineiramente, levam restos de restaurantes e de padarias e sacos de ração para alimentar os cães que vivem nas áreas arborizadas de Istambul. Voluntários também levam ajuda veterinária privada para cuidar dos animais que estejam seriamente doentes, frequentemente assumindo os custos, já que os veterinários da municipalidade apenas dão o tratamento básico.
Senpolat diz que, mais do que fazer o trabalho do governo local e cuidar dos animais, os moradores deveriam insistir para que as autoridades assim o fizessem. Ele pede à população que faça campanha por leis que atinjam a raiz do problema, o contrabando de animais e as pet shops ilegais.
Traficantes de animais só recebem uma multa de algumas centenas de euros no máximo, e continuam a levar filhotes de raça pura para a venda em lojas de animais. Muitas pessoas também abandonam os filhotes que cuidam, quando se torna muito difícil de os manter.
Sem abordar o contrabando, Senpolat diz que mesmo as “práticas de castração rigorosas” da lei não serão suficientes para manter a população de animais abandonados de Istambul sob controle.
A necessidade de abordar as causas dos milhares de cães em Istambul é ainda mais premente tendo em vista a evolução da relação entre eles e os seres humanos, ao longo de centenas de anos. Enviar os cães para outro lugar não é solução. Reprimir o contrabando de cães – e os tutores que não cuidam de seus animais e os abandonam nas ruas – não vai resolver o problema, mas pelo menos podem ser alguns passos na direção de uma solução.