No dia 26 de julho de 2017, o governador Geraldo Alckmin vetou o Projeto de Lei n. 706 de 2012 após este haver sido aprovado por unanimidade na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Esse é o projeto que restringe a utilização de animais em atividades de ensino no Estado de São Paulo, do deputado Feliciano Filho.
Cuidadosamente elaborado para não contrastar com as disposições federais, o PL tinha a função de suplementá-las, fazendo-as cumprir.
É que a Lei 9.605 de 1998, em seu § 1º do Art. 32 estabelece: “Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”. No entanto, a referida lei não tipifica o que seja doloroso ou cruel, cabendo seu significado ao impirismo. Sabemos o que é doloroso e cruel por nossas próprias experiências, e o antropocentrismo nos permite extrapolar esta experiência para outros seres humanos, mas enquanto houver interesse de não fazê-lo jamais se admitirá que aquilo que é doloroso e cruel para os seres humanos também o será para outros animais.
Mais do que isso, quando a Lei 9.605/98 foi aprovada, a frase “quando existirem recursos alternativos” já se encontrava defasada, uma vez que àquela altura já existiam recursos alternativos para todos os procedimentos didáticos em uso, a lei apenas não estabelecia a quem cabia fiscalizar seu cumprimento e de que forma fazê-lo. Em termos práticos: se uma pessoa soubesse de um professor universitário que está preparando cortes de cérebro de cão para demonstrar aos seus alunos a anatomia do cérebro e do tronco cerebral e esta pessoa soubesse que a Universidade da Califórnia em Davis elaborou softwares educacionais que já mostram estas estruturas em um Atlas interativo, inclusive podendo apresentá-las com diferentes cores, com a adição de explicações, gráficos e outras comodidades, o que ela poderia fazer? Ir a uma delegacia comum e denunciar? Ao Ministério Público?
A utilização de animais no ensino não visa elucidar coisa alguma, trata-se apenas de reproduzir procedimentos com vistas à demonstração de fenômenos já conhecidos. Exceto pelos treinamentos que visam conferir aos estudantes habilidades específicas, como o treinamento cirúrgico, por exemplo, a maioria das demonstrações podem ser substituídas por vídeos de procedimentos anteriores. A repetição é desnecessária.
Com relação ao treinamento cirúrgico, abundam métodos alternativos, como treinamentos em ambientes de realidade virtual e sistemas hápticos que simulam a textura da pele humana e outras características, de forma mais realista do que fazem em porcos ou cães. A Lei 9.605/98 deveria ter extinguido com a utilização didática de animais assim que entrou em vigor, mas a dificuldade de aplicação o impediu.
Referente à Lei 11.794 de 2008, que estabelece os procedimentos para o uso científico de animais, esta cria o CONCEA – Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal, cuja competência está listada no Artigo 5o :
I – formular e zelar pelo cumprimento das normas relativas à utilização humanitária de animais com finalidade de ensino e pesquisa científica;
II – credenciar instituições para criação ou utilização de animais em ensino e pesquisa científica;
III – monitorar e avaliar a introdução de técnicas alternativas que substituam a utilização de animais em ensino e pesquisa;
IV – estabelecer e rever, periodicamente, as normas para uso e cuidados com animais para ensino e pesquisa, em consonância com as convenções internacionais das quais o Brasil seja signatário;
V – estabelecer e rever, periodicamente, normas técnicas para instalação e funcionamento de centros de criação, de biotérios e de laboratórios de experimentação animal, bem como sobre as condições de trabalho em tais instalações;
VI – estabelecer e rever, periodicamente, normas para credenciamento de instituições que criem ou utilizem animais para ensino e pesquisa;
VII – manter cadastro atualizado dos procedimentos de ensino e pesquisa realizados ou em andamento no País, assim como dos pesquisadores, a partir de informações remetidas pelas Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs, de que trata o art. 8o desta Lei;
VIII – apreciar e decidir recursos interpostos contra decisões das CEUAs;
IX – elaborar e submeter ao Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, para aprovação, o seu regimento interno;
X – assessorar o Poder Executivo a respeito das atividades de ensino e pesquisa tratadas nesta Lei.
A lei como um todo se constitui em retrocesso legal e já tive a oportunidade de esclarecer isto em texto anterior, no entanto, cabem aqui alguns questionamentos específicos:
– O que significa “utilização humanitária” de animais com finalidade de ensino e pesquisa científica? Quando um ser humano aceita participar de determinada pesquisa ele precisa ser informado dos propósitos da pesquisa, deve consentir participar por escrito e os pesquisadores e professores devem assegurar que ele não será prejudicado ao longo do experimento. Entendo que isso seja uma utilização humanitária.
Animais, por outro lado, não podem entender os propósitos do procedimento, nem consentir participar, e o Artigo 14 desta mesma lei estabelece a regra de se matar o animal ao fim dos procedimentos. Não vejo onde um procedimento que visa o prejuízo e a morte do animal possa ser considerado humanitário, essa não seria uma aplicação plausível do termo para seres humanos.
– Ao criar a atribuição do CONCEA de monitorar e avaliar a introdução de técnicas alternativas que substituam a utilização de animais em ensino e pesquisa, a Lei Arouca engessou a substituição do uso de animais no ensino e pesquisa. É que antes podia-se simplesmente apontar a existência de métodos substitutivos e todos aqueles que não o estivessem empregando, preferindo ainda assim o uso de animais, estariam automaticamente incorrendo em crime ambiental.
A Lei Arouca criou um gargalo, pois mesmo que Harvard, a Universidade da Califórnia e o John Hopkins atestem e utilizem determinados recursos como substitutos efetivos no aprendizado de estudantes e muitas vezes até melhores do que técnicas que utilizam animais, enquanto o CONCEA não validar tais recursos, eles não serão considerados.
Ainda que houvesse boa fé por parte do CONCEA, eles não teriam pernas para avaliar todas as possibilidades de recursos já existentes. Além disso, cabe aqui um questionamento: recursos alternativos necessitam ser avaliados em relação à sua efetividade como recursos de ensino e pesquisa, mas jamais houve uma necessidade de validação das próprias utilizações de animais. Dez entre dez pesquisadores ou professores admitem que animais não reproduzem o organismo humano com perfeição, ou que animais induzidos a determinadas condições não reproduzem o organismo animal doente com perfeição, mas aparentemente isto não é empecilho para que a utilização de animais nestas condições sejam o método padrão de pesquisa e ensino. Por quê?
O Prof. João Epifânio Regis Lima, em sua tese de mestrado apresentada à USP, “Vozes do silêncio – ideologia e alienação no discurso sobre vivissecção”, posteriormente publicada como livro, traz alguns questionamentos em relação à utilização de animais na pesquisa e no ensino, mas especificamente em determinados trechos ele realiza uma comparação entre as academias de formação científica e as instituições de formação religiosa.
A comparação é bastante válida no sentido de que mesmo professores e estudantes de medicina, medicina veterinária, enfermagem, biologia, psicologia, etc., não estão livres dos preconceitos que permeiam as sociedades nas quais estão inseridos. A constatação da existência de tais preconceitos e ideias preconcebidas de forma alguma os desqualifica como profissionais, mas certamente impede que estejam abertos a outras ideias.
Eu não duvido que antes de se popularizar a história de que este fosse um recurso adotados pelos senhores de escravo para evitar o esbalde, que médicos recomendassem aos seus pacientes que não misturassem leite com manga. Não era essa, obviamente, uma explicação cientificamente embasada, embora inquestionavelmente eram bons médicos que a realizavam.
As vezes cabe um questionamento científico das ideias preconcebidas, e isso é verdadeiro não apenas para as pessoas comuns, mas também para estudantes em formação e pesquisadores doutores.
Acompanhando o deputado Feliciano em reuniões no Palácio dos Bandeirantes e com acadêmicos preocupados com a aprovação da lei isto ficou bastante evidente. Não questiono as habilidades técnicas e o conhecimento científico de nenhum de meus contendedores, pelo contrário, sei que em suas respectivas áreas de conhecimento eles formam a elite do conhecimento e tenho satisfação em ter estudado com alguns dos melhores, na UNICAMP e na ESALQ. A questão diz respeito, especificamente, à falta de questionamento científico por parte destes no que diz respeito à utilização de animais e à realização de afirmações sem qualquer fundamentação que as respaldasse.
Se por um lado abunda sua expertise em suas áreas de conhecimento específico, por outro lado faltam conhecimentos referentes aos métodos substitutivos, e mais do que isso, está ausente o questionamento não apenas da falta de ética que permeia a utilização prejudicial de animais, mas de seu caráter anti-científico.
A maior parte dos argumentos utilizados na reunião com representantes da UNICAMP, nos argumentos apresentados por docentes da USP e novamente reproduzidos ontem em reunião com o Governador do Estado de São Paulo, Dr. Geraldo Alckmin, são não-técnicos e não-científicos, mas sim baseados no preconceito.
Novamente, não tenho a menor dúvida de que em suas respectivas áreas de conhecimento estivemos nos reunindo com as pessoas mais gabaritadas, mas especificamente no que tange à utilização de animais e aos métodos substitutivos, os argumentos apresentados não faziam jus a este conhecimento.
Um dos argumentos apresentados foi que a excelência das universidades estaduais paulistas (USP, UNICAMP e UNESP) se devem à sua preferência pela utilização de animais, ao contrário das universidades federais e particulares que já os vem substituindo. Ora, fosse tal relação verdadeira ela deveria também se reproduzir em outros estados e países, mas não é o que se observa. Estudantes se formam em faculdades nos EUA, Canadá e Europa muitas vezes sem utilizar animais como recurso didático e não vemos questionamento quanto à sua capacidade técnica.
Ouso dizer que tais universidades paulistas mantém sua excelência APESAR de ainda insistirem em utilizar animais, e não DEVIDO a utilizarem-nos. Se as universidades federais e particulares já quase as alcançam, embora sem tradição e com processos seletivos menos exigentes, é porque utilizam recursos didáticos superiores.
Aliás, o questionamento em relação à formação em outras universidades, muitas vezes colocado de forma capciosa, muitas vezes não visa obter uma resposta verdadeira, sendo realizada de forma até sarcástica. Na reunião de ontem, por exemplo, o Sr. Governador perguntou se pretendemos que um estudante que apenas operou bonecos já pegue seu diploma e saia operando seres humanos. O Governador, que tem formação médica, provavelmente já sabia a resposta quando fez a pergunta. Também não espera ele que um estudante que operou suínos pegue seu diploma e no dia seguinte já saia operando seres humanos, simplesmente não é assim que ocorre, nem isto se aproxima de nossa proposta.
Nestas últimas semanas em que estive acompanhando o Deputado Feliciano Filho pude perceber que os argumentos para defender a utilização didática de animais não evoluíram na mesma medida em que evoluiu a ciência. São basicamente os mesmos argumentos que venho escutando desde a década de 1990.
E tampouco haver uma resposta para cada argumento colocado surtia qualquer efeito de mudança. Por exemplo, quando na reunião com representantes da UNICAMP colocou-se que a proibição do uso didático de animais prejudicaria as aulas de parasitologia, porque parasitas obrigatórios necessitam do corpo de seus hospedeiros para se desenvolverem, indiquei que na própria biblioteca do Instituto de Biologia da UNICAMP havia ao menos dois livros que versavam sobre o cultivo in vitro de parasitas obrigatórios, e que estes já haviam sido escritos na década de 1980, ao que recebi a resposta de que isso não vinha ao caso.
Na reunião de ontem o Sr. Governador usou o argumento da necessidade de porcos para o ensino de laparoscopia, ao que o Deputado Feliciano lhe apresentou um vídeo que mostrava a utilização de simuladores que ensinavam justamente laparoscopia e depoimentos de professores da Santa Casa avaliando um melhor aprendizado de seus estudantes por um custo menor, ao que o Sr. Governador continuou argumentando com base em laparoscopia, como se um método substitutivo não lhe houvesse sido apresentado.
Na reunião que tivemos com representantes da UNICAMP, esses se disseram pegos de surpresa por um projeto de lei que procurava abruptamente impor a completa substituição de animais no ensino, mas esse não é um projeto de lei de forma alguma abrupto. A sociedade como um todo vem questionando a utilização didática de animais e leis já vem falando sobre métodos alternativos há pelo menos duas décadas. Em 2003, a quase 15 anos, tivemos a oportunidade de publicar um livro que já apresentava uma listagem de recursos substitutivos que vinham sendo utilizados até então, inclusive apresentando estudos que mostravam que seu emprego apenas havia melhorado o aprendizado de estudantes, o que contradiz qualquer afirmação de que a adoção de alternativas representaria um retrocesso no aprendizado.
Na esfera pessoal, confesso ser desgastante utilizar argumentos fundamentados para questionamentos que não visam o debate frutífero, e em retorno ver que os argumentos não são considerados. Fica claro que o propósito do debate em nenhum momento foi produzir algum resultado positivo.
Ontem, quando o Sr. Governador entrou na sala para debatermos, ele já tinha uma resposta. Não importava quais argumentos utilizássemos. Isso ficou claro quando ele lançou alguns questionamentos que não cabiam (como este de que pretendíamos que um estudante que operou um manequim pegasse seu diploma e saísse operando seres humanos). Não fosse sua exaltação inicial, a truculência e a improbidade com que tratou o Deputado Feliciano, tentando encerrar a reunião em poucos minutos, não teríamos sequer tido a chance de expor nossos argumentos.
A Dra. Vania Tuglio, representando o Ministério público do Estado de São Paulo, de maneira bastante apropriada, desconstruiu os argumentos dos assessores jurídicos do Sr. Governador de que o PL seria inconstitucional ou contraditório a leis federais. Pelo contrário, esse as suplementaria, cabendo sim aos estados fazê-lo.
A Dra. Nédia Maria Hallage, infectologista e representando a Faculdade de Medicina do ABC, trouxe vários argumentos de que cabia sim ao estado legislar em relação à matéria e que tal lei representaria não apenas um ganho técnico, mas acima de tudo moral e ético. A formação extremamente mecanicista de médicos, veterinários e outras carreiras dessensibiliza os estudantes, tornando a medicina, a veterinária e outras profissões desumanizadas, no sentido de “coisificar” os pacientes, simplificando-os ao estados de suas doenças.
A Dra. Julia Matera, representando a Faculdade de Medicina Veterinária da USP, argumentou em relação ao ganho técnico que a aplicação de recursos substitutivos trouxe para seus estudantes e igualmente argumentei que o propósito de tal lei não era trazer um retrocesso, mas sim que isso representaria um ganho para os estudantes, afirmação essa fundamentada em numerosos estudos que apontavam para essa direção. Outros presentes realizaram afirmações que desconstruíam ponto a ponto cada argumento colocado pelo Sr Governador, seus assessores e mesmo as instituições.
Mas, se é verdade a máxima latina a facto ad jus non da tur consequentia (não há argumentos contra fatos), também é verdade que não há argumentos que possam vencer preconceitos e ideias arraigadas. Não estavam nem o Sr. Governador, nem os doutores com os quais debatemos, abertos a escutar sobre a já existência de métodos substitutivos e quão efetivos esses são na formação de profissionais nas mais diversas carreiras. Fomos escutados apenas para que posteriormente não se dissesse que não fomos, e o PL foi vetado como seria qual fossem os argumentos utilizados.