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Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 2)

5 de março de 2010
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Dando continuidade à lista de exigências formais para a validação de uma decisão como ética, iniciada na coluna anterior:

5 – Clareza conceitual: Os termos do princípio ou regra precisam ser bem definidos, caso contrário, não ajudarão ninguém a escolher o que decidir. Por exemplo, se alguém propõe “devemos respeitar à natureza”, deve explicitar claramente o que significa “respeito” e “natureza”. Por exemplo, “respeitar a natureza” pode ser entendido como preservar plantas, animais silvestres, rios, montanhas, etc. Pode se referir também “deixar os acontecimentos naturais seguirem o seu curso (trovoadas, enchentes, erupções vulcânicas, predação, morte natural, não fazer a barba, não tomar remédio, não usar camisinha, etc). Pode se referir à só fazer aquilo que serve a uma “função” natural (por exemplo, fazer sexo apenas para ter filhos). Em cada uma dessas definições, a ação prescrita vai ser muito diferente uma da outra. Por exemplo, se é definido como “preservar animais e plantas” vai mandar socorrê-los de uma enchente provocada por causas naturais. Se não mandar, então é porque está sendo definido como “deixar as leis naturais seguirem o seu curso”. Se deixamos o termo vago, não saberemos exatamente o que fazer. Não estou afirmando que essas interpretações de “respeito à natureza” são eticamente válidas; trago-as apenas para ilustrar a dificuldade com a clareza conceitual.

6 – Fatos relevantes: Um bom raciocínio ético começa com a interpretação dos fatos como eles são, e não como gostaríamos que fossem. Além de coletar todos os fatos, precisamos ter atenção sobre quais são relevantes para a decisão e quais não são. Veremos um exemplo desse ponto no item 11.

7 – Generalidade: O princípio ético tem como objetivo ser recomendado a todos os agentes morais. Por isso, precisa ser geral em sua forma, ou seja, não pode fazer referência a indivíduos específicos, pois visam serem aplicados em muitos casos. “Que todos façam o que é melhor para o Luciano Cunha” ou “que João cumpra o que prometeu para Maria” não são princípios ético, apenas aplicações particulares de certos princípios. Se, no primeiro exemplo, dizemos que Luciano Cunha é, de todos os indivíduos salvos de um naufrágio, o que está em pior situação, então o mesmo vale para todo e qualquer indivíduo que pode se encontrar em seu lugar. A regra seria então: “atender primeiro o que estiver na situação pior”. No segundo exemplo, teríamos de tornar a regra geral o bastante para contemplar todo e qualquer indivíduo que pudesse se encontrar no mesmo tipo de situação. Por exemplo, “Que todos cumpram suas promessas”.

8 – Deve valer para todos os agentes morais. Se, como vimos, o princípio precisa ser geral na forma¸ então não faz sentido dizer que vale para um agente cumprir e outro não. Se fazer sofrer é errado, é errado pelo ato e a consequência em si, e não de acordo com quem o praticou. Por exemplo, dizer que “sou vegano, mas se outras pessoas quiserem comer animais, não há problema algum” não é uma posição ética a favor do veganismo. Pelo contrário, é uma posição que diz ser certo (mas não um dever) o carnivorismo. Uma posição ética a favor do veganismo teria de dizer “todos os agentes morais devem ser veganos”, que poderia estar baseada, por exemplo no princípio da não-maleficência. Assim, a menos que seja apontada uma razão válida para eximir um agente moral do cumprimento de um dever, é necessário reconhecer que, todas as outras coisas sendo iguais, um princípio ético é sempre recomendado para todos os seres racionais, pois esta é justamente sua finalidade (orientar as decisões de seres racionais).

Dever, certo e errado:

Importante notar que, se alguém fala que alguns atos são opcionais eticamente, também está prescrevendo que isso deve valer para todos os agentes morais. Mesmo quando alguém, por exemplo, diz que “doar órgãos deve ser opcional”, espera que todos os outros agentes concordem que isso deve ser opcional. Assim, está dizendo que tal ato é certo, mas não um dever. Vimos no item anterior que essa implicação (de valer para todos os agentes) está tão ligada ao próprio raciocínio, que nem os subjetivistas/relativistas podem deixar de reivindicá-la quando afirmam que a ética é subjetiva ou relativa, pois esperam que todos concordem com isso (mas, como vimos, isso também contradiz suas pretensões). Agora, quando alguém diz que “trapacear é errado”, está dizendo que é um dever não trapacear. Quando alguém diz que, “o certo é dizer a verdade”, está dizendo que dizer a verdade é um dever. As idéia de “Dever” e “o certo” deixam apenas uma única opção para o agente; “errado” proíbe uma opção, ainda que deixa em aberto se existem várias ou apenas uma correta e; “certo” valida uma opção, ainda que não a obriga. Contudo, na reivindicação de todas essas categorias, sejá lá quais forem, está implícita a idéia de que deve valer para todos os agentes.

Tomando novamente o exemplo anterior, podemos perceber agora que não apenas os que dizem “todos deveriam se tornar veganos” estão prescrevendo sua posição como válida para todos cumprirem. Os que dizem que “ser vegano deveria ser opcional” estão automaticamente dizendo que “comer animais é certo, mas não um dever”, portanto, pretendendo que todos os agentes concordem com essa afirmação. Na maioria das vezes, os que reivindicam um dever de praticar o veganismo são acusados de querer que todos adotem sua posição; contudo, isso vale também para os que defendem que o veganismo é opcional, bem como os que afirmam que o veganismo é errado. Em suma, qualquer posição que pretenda ser validada como ética, precisa incorporar essa exigência fundamental de valer para todos os agentes morais. Importante lembrar que isso não significa que toda posição que cumpra essa exigência seja válida eticamente. Isso não pode acontecer, porque do contrário, teríamos três posições válidas que estão diretamente em conflito (veganismo é um dever; veganismo é opcional; veganismo é errado). Por esse motivo foi mencionado que todos os critérios listados aqui são necessários, ou seja, não basta cumprir um deles, mas sim, todos. Veremos na terceira parte que apenas uma das posições acima cumpre todos os critérios listados aqui.

9 – Deve valer com independência de estados subjetivos dos agentes morais. Nossa preocupação é descobrirmos quais ações ou traços de caráter são errados, certos, um dever, etc. Como vimos, na refutação do subjetivismo feita algumas colunas atrás, essas coisas independem dos estados subjetivos de quem está decidindo. Só por eu querer que algo seja certo não faz esse algo deixar de ser errado. Portanto, um bom raciocínio ético reconhece que o certo, errado, dever são como são independentemente das inclinações, desejos e emoções de quem está decidindo. Alguém não consegue, por exemplo, fazer com que ajudar os pobres deixe de ser um dever só porque não gosta de ajudar. É por isso que não faz sentido pensar que questões como o status moral dos animais não-humanos é algo para quem “gosta de animais”, apenas.

O falácia do apelo à autoridade

Importante lembrar que o mesmo vale  para os desejos de uma autoridade moral. Supondo a maior autoridade moral que pudesse existir (por exemplo, um Deus, que tivesse todo o conhecimento moral do mundo). Se as coisas fossem certas ou erradas de acordo com a vontade de Deus, então, se Deus desejasse, o estupro seria correto. Mas, continuaríamos a achar o estupro errado, mesmo que Deus dissesse que é correto, pois mesmo Deus ainda teria que apresentar uma razão para nos convencer que algo tão ruim assim é correto – caso contrário, perceberíamos seu desejo como arbitrário demais (mesmo Deus estaria sujeito às regras racionais). Se, em contrapartida, é dito que Deus é bom, e jamais poderia desejar que algo como o estupro fosse correto, então admite-se um padrão ético objetivo, que é independente até mesmo da vontade de deus. O mesmo vale para qualquer outra autoridade moral. Se “A” é uma autoridade moral, a quem devemos nos inspirar, é porque faz as coisas que são corretas; e não que as coisas passam a ser corretas porque são feitas por “A”. Confundir esse ponto é cometer a falácia do apelo à autoridade (por exemplo, “x deve ser errado, porque A, que é uma autoridade em ética, disse que é errado”).  Isso é importante, porque, ao reconhecermos que as coisas são certas ou erradas independentemente de quem as pratica, podemos detectar erros até mesmo na posição de indivíduos considerados autoridades morais.

Na próxima coluna, continuaremos com as exigências formais para uma decisão ser validada eticamente.

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