Uma lenda quanto aos “poderes de sedução” dos botos-cinza tem exterminado esses animais na Amazônia . Também conhecidos como tucuxi, os botos-cinza são parentes próximo dos golfinhos do mar, mas que vivem em rios. Segundo a lenda, à noite o animal sairia das águas e se transformaria em um rapaz elegante, cordial e irresistível. O mito é tão presente no imaginário popular que, há décadas, os predicados do boto viraram oportunidade de negócio. Na Região Norte, os mercados municipais vendem pequenos vidros com pedaços dos órgãos sexuais do animal imersos no óleo ou no perfume, como amuletos do amor. São ampolas de vidro cujo rótulo anuncia o poder de sedução do boto. Prometem ajudar a amarrar para sempre o amado ou a amada. Mas são ilegais: vender pedaços de bichos da fauna brasileira é crime ambiental.
Adulto e filhote de botos-cinza. Partes deles são vendidas no
amuleto, como se fossem do boto-tucuxi da lenda amazônica.
Desde antes da colonização do Brasil, os ribeirinhos da Região Norte matam os botos e infringem a lei em nome da tradição. Enquanto ficava restrita aos mercados municipais (especialmente o Ver-o-Peso, em Belém, e o Adolpho Lisboa, em Manaus), a prática estava, de certo modo, limitada a um universo modesto de consumidores. Mas agora o comércio chegou à internet. O alcance da rede multiplica o número de potenciais compradores – e, portanto, a ameaça ao animal. Pelo menos três sites anunciam o óleo e o perfume do boto, entre eles o Que Barato, uma conhecida empresa de vendas on-line.
Embora proibida, a venda continua também no tradicional mercado Ver-o-Peso, em Belém, Pará. As cerca de 60 “erveiras” que oferecem garrafadas e outros preparados com plantas nativas vendem discretamente o vidrinho com a genitália do boto. O produto fica guardado dentro da barraca. “A gente tem de ser discreta por causa das câmeras”, afirma uma erveira, apontando as lentes do sistema de segurança do mercado. O vidro custa R$ 5. “Se a gente for pega vendendo isso, paga multa de R$ 500. É proibido porque o bicho está ameaçado”, diz. Além dos amuletos, os comerciantes colocam na prateleira a genitália toda ou até o olho do bicho, talismã dos mais cobiçados.
Além de nociva aos botos, a venda dos amuletos do amor é enganosa. Há dois anos, a bióloga Thais Sholl, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pesquisou os vidrinhos. Ela extraiu o DNA de 34 amostras de tecidos encontrados nos mercados de Belém e de Manaus e concluiu que todos tinham vindo de botos. Mas não do tucuxi (Sotalia fluviatilis) da lenda nem do famoso boto-cor-de-rosa, que vive na mesma região. Tratava-se do Sotalia guianensis, um boto marítimo – o golfinho – avistado em toda a costa do Brasil. O animal, com cerca de 1,70 metro, é capturado pelos pescadores na Bacia do Marajó, ao norte de Belém, e na costa do Amapá.
As erveiras afirmam que não encomendam a morte do animal. “O pessoal não pega por maldade. O boto fica preso na rede dos pescadores, e aí você não vai jogar tudo fora”, diz uma delas. Segundo o biólogo Salvatore Siciliano, pesquisador da Fiocruz, os mamíferos morrem afogados por não conseguir subir à superfície para respirar. “Eles são vendidos por um preço irrisório. É só um extra para os pescadores.” Os pescadores retiram os órgãos que interessam (olhos e genitálias) para a confecção dos amuletos. A carne dos animais é vendida ainda em alto-mar a outros barcos e serve de isca de tubarões. A carcaça vai para a água. Sem as provas do crime, ninguém corre o risco de ser flagrado pela fiscalização em terra firme.
A captura “acidental” dos botos não é crime. Mas eles morrem do mesmo jeito. Um estudo feito pelo Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos da Amazônia (Gemam) mostra que uma rede de pesca normalmente sai da água com quatro botos. Multiplicado pelos milhares de barcos de pesca do Brasil, o número preocupa. Em 2007, um técnico contratado pelo Ibama flagrou uma embarcação com mais de 80 botos mortos na costa do Amapá. Ninguém foi preso nem multado. Não se sabe ao certo o impacto sobre a população dos botos. O próprio grau de conservação do animal é indefinido. Mas o Ibama, responsável por fiscalizar os impactos da pesca e a morte dos botos, está menos rigoroso. No dia 21 de outubro, por pressão de representantes da pesca industrial, suspendeu por dois meses a restrição a redes com mais de 2,5 quilômetros de comprimento – que favorecem a captura de botos e baleias. O equipamento era proibido desde 1998.
Com informações de Época