“Eu me mudei, não por mim, porque o meu apartamento era todo arrumadinho, pintado do jeito que eu gostava, decorado. Mas eu pensei neles, nos animais, em amor a eles. Segundo a minha mãe, toda caridade tem seus sacrifícios. Eu me mudei e trouxe todos que eu pude trazer comigo para um lugar bem espaçoso”, a declaração é da servidora pública Socorro Carvalho.
A declaração resume o desfecho de uma história que ilustra bem os conflitos entre diversos condomínios e tutores de animais.
O caso tomou rumos tão complexos que foi parar na Justiça, motivo pelo qual a servidora preferiu não citar o nome do residencial na entrevista à Todavia. Foi ali, na região na zona Leste da capital, onde morou por nove anos, que começou a cuidar diariamente de sete gatos comunitários que, segundo ela relatou, sempre fizeram parte do convívio dos moradores: alimentados, vacinados, medicados e acompanhados por ela e por outros condôminos.
De acordo com Socorro Carvalho, o conflito começou com um cartaz. O documento obtido pela Todavia alertava com letras grandes e verdes “Não alimente os animais nas áreas comuns”. O texto seguia informando que a garagem do condomínio era reservada apenas para guardar veículos, sendo vetadas outras atividades, que segundo o folheto descrevia prejudicavam “a higiene, saúde e bem-estar coletivo”.
Segundo ela, a decisão foi tomada sem consulta às 72 unidades. Socorro Carvalho acionou a Polícia Ambiental e abriu um inquérito, mas, relatou que não obteve muito avanço, recorreu ao Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI) e conseguiu uma decisão inédita no estado, garantindo seu direito de alimentar os gatos na garagem. A servidora acrescentou que ali não foi o fim da história. A vitória judicial, porém, acirrou a tensão.
“Quando eu chegava na minha garagem, estava a ração toda espalhada, jogada, as vasilhas jogadas fora e estavam lá recados para mim, direcionados a mim, e eu me senti ameaçada. Eu comecei a sofrer ameaças lá dentro. Todo mundo estava com receio, com medo, porque ela [a síndica] começou a perseguir as outras pessoas que estavam com medo por esses animais, ela começou a multar. Eu tirei coragem não sei de onde para poder defender o direito deles e manter o bem-estar animal deles”, declarou.
Ela contou que houve um episódio em que um dos gatos apareceu ferido. “Era um machucado grande no lombo, o veterinário disse que foi pancada”, descreveu. Sem sentir segurança para si e para os animais, tomou a decisão mais difícil: mudar-se. A servidora conseguiu adoção para um dos gatos e levou todos os outros com ela. Hoje, comemorou, vivem em paz em um novo lar.
Remoção de gata idosa de condomínio na zona Leste vai parar na Justiça
A disputa entre moradores, antes interna em um condomínio na zona Leste de Teresina, também ganhou um capítulo no Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI). O processo obtido pela Todavia tem mais de 400 páginas. Segundo o condômino e advogado, Thiago Rego, o conflito teve início quando os animais comunitários, pelo menos seis gatos, alimentados e cuidados por moradores há anos, passaram a ser questionados pela nova administração do condomínio, que passou a defender que os felinos fossem colocado para adoção.
Segundo o advogado, toda a situação ganhou ênfase, após a criação de uma comissão para atualizar o regimento do condomínio em relação aos animais, bem como para regulamentar a situação deles em um espaço específico, e para construir “casas”, pequenos abrigos para os felinos.
“Eis que um dia nós fomos surpreendidos com um e-mail dizendo que os animais estavam sendo coletados e que iam levar para um sítio sem passar nada pela comissão. A Waléria, que é a pessoa que era mais ligada a esses felinos, se desesperou. Pegaram o gato, tiraram esse gato, não deram mais notícia desse gato, que era dos mais antigos lá”, destacou.
O animal que foi coletado, em questão, é a gata comunitária conhecida como “Cajuína”, que foi levada do condomínio e tem a sua situação judicializada na 8ª Vara Cível da Comarca de Teresina. A ação foi ingressada pela moradora Waléria Ferraz Lima, integrante da Comissão dos Animais do prédio. À Todavia ela descreveu o que houve antes da remoção do felino.
“O rapaz entrou em contato comigo dizendo que precisava levar com urgência todos os animais para um sítio e que ele criava aves exóticas, e que precisava com urgência, porque nesse sítio dele tinha muita cobra e escorpião. E ele ia lá frequentemente com a família dele e ele sabia que gato caça cobra, caça escorpião na cabeça dele, e ele precisava levar esses gatos com urgência. Obviamente eu não aceitei, porque isso não é uma adoção. É igual você ir pra uma ONG procurar um cachorro pra ser é adotado para ser cão de guarda, vigia de uma casa. Ninguém vai entregar um animal para fim de trabalho. Adoção é uma coisa séria. Então, eu neguei a adoção”, explicou a moradora, ressaltando que a gata Cajuína tem pelo menos 10 anos e mostrando os respectivos áudios para o boletim.
Ela ainda destacou que os gatos recebiam cuidados constantes e viviam em condições adequadas, ressaltando que todos os animais eram castrados, vacinados e vermifugados, além de possuírem casinhas próprias. Waléria também explicou que havia dois pontos fixos de alimentação definidos pela comissão e aprovados em assembleia, onde as casinhas eram mantidas limpas e abastecidas diariamente. “Os animais eram todos castrados, vermifugados, vacinados, tinham casinhas e dois pontos de alimentação definidos pela comissão e pela assembleia. As casinhas eram limpas e os gatinhos recebiam cuidado constante”, afirmou.
Segundo a decisão de primeiro grau, o juiz determinou que o condomínio não pode retirar mais retirar nenhum outro animal comunitário sem autorização da Comissão, criada em assembleia e prevista no regimento interno. Em caso de descumprimento, a multa é de R$ 500 por dia, limitada a R$ 5 mil.
Mas, por outro lado, o magistrado negou o pedido de retorno imediato da gata Cajuína, entendendo que a devolução exigiria mais provas, abertura de contraditório para representantes do condomínio e esclarecimentos sobre o destino do animal e suas condições atuais.
Para o juiz, ainda não foram apresentadas provas suficientes para provar que a gata Cajuína está em risco ou situação de maus-tratos no local onde foi levada. Os moradores recorreram, mas, o pedido também foi novamente negado pela desembargadora Lucicleide Pereira Belo, da 3ª Câmara Especializada Cível. A nova decisão destacou ainda que o caso exige cautela e que a fase atual do processo não permite uma ordem tão imediata sem ouvir as partes envolvidas.
A Todavia buscou contato com a ex-síndica do prédio, responsável pela gestão na época em que o caso aconteceu, mas ela optou por não se pronunciar. O Boletim também buscou contato com a atual administração do condomínio, por meio da síndica vigente.
A síndica Renata Nunes afirmou que todo o processo envolvendo a adoção dos gatos ocorreu ainda na gestão passada. De acordo com Renata, o adotante da gata Cajuína é um ex-morador e assinou um termo de adoção de cinco gatos dentro dos parâmetros estabelecidos e prestando esclarecimentos exigidos pelo Poder Público. Ela explicou que esse adotante foi notificado para prestar esclarecimentos sobre o destino da gata que foi levada.
Renata declarou ainda que, originalmente, havia sido criada uma comissão interna com o objetivo de regulamentar a permanência dos felinos, organizar um ponto de alimentação e buscar adotantes, mas, segundo afirmou, a comissão acabou não cumprindo essas funções.
“O que aconteceu foi que algumas pessoas tomaram o animal como propriedade sem levar o animal para dentro da sua propriedade, queriam criar o animal ao relento, debaixo de carro. Depois que ex-síndica fez tudo dentro da lei, nosso jurídico foi acionado, pois houve uma exposição em rede social, e estamos respondendo como se o condomínio tivesse praticado um crime, mas não somos criminosos, até que se prove o contrário. Eu vi toda a documentação assim como nossos superiores e não veio nada de errado, hoje o que adotou não mora mais aqui em Teresina, mas intimamos ele, devido ao processo. O condomínio faz a sua parte, mas não podemos permitir que os animais vivam soltos, sem que ninguém faça uma campanha, eles precisam de um lar”, declarou.
A coluna permanece aberta e à disposição para quaisquer outros esclarecimentos sobre o caso.
Na Justiça, o processo agora segue para manifestação do Ministério Público e, posteriormente, julgamento do mérito no Tribunal. Até lá, a gata Cajuína longe do prédio e a tensão entre tutores e moradores continua longe de arrefecer.
Insatisfação com gatos na escadaria, bate-boca e câmera em porta
Os conflitos deste caso começaram quando os gatos de rua do entorno do bairro, que eram alimentados por moradores, passaram a buscar abrigo na área comum do condomínio nas tardes de calor do B-R-Ó Bró piauiense, onde fazia sombra. A situação se agravou, em pouco tempo, em torno de uma gata que costuma descansar na escada, e que virou um dos centros do conflito. A fonte que fez essa denúncia à Todavia, tem familiares já em idade avançada, e pediu para não ser identificada por medo de represálias, uma vez que, segundo a pessoa entrevistada, até uma câmera já foi instalada na frente da porta de sua casa. “Acho que querem fiscalizar se minha mãe não está trazendo mais nenhum animal aqui para dentro”, justificou.
O condômino em questão é do tipo que não possui uma gestão, com um síndico, de fato. “É algo bem desorganizado”, descreveu a fonte. Então, a confusão tomou forma entre vizinhos, com xingamentos e até uma denúncia na polícia por perturbação da ordem, devido a presença dos bichos. “Chamaram minha mae de preguiçosa, dizia que ela só dava trabalho, criava confusão na frente dos outros”, disse.
Segundo a fonte, uma placa também foi instalada, solicitando aos demais moradores que mantenham os animais dentro de casa. A principal insatisfação é com a presença dos felinos na escada do prédio.
Para reduzir os conflitos, a família levou parte dos animais para dentro do apartamento. O desfecho, até aqui, é menos uma resolução e mais uma convivência tensa que se arrasta. “Ela trouxe aqui para dentro para o gato não ficar mais saindo, e é isso, esse é o relato das perseguições até hoje, o problema é que ela é idosa e fica passando por essas situações, ela fica nervosa, tem pressão alta, é horrível pra ela”, descreveu.
“Os gatos escolheram a minha janela como caixinha de areia”
“Eu não vou querer me identificar, porque sei que vão ficar contra mim, mas, no geral, só é a favor quem nunca passou por um vexame desses”, destacou fonte anônima entrevistada pela Todavia, que é contra a permanência de animais comunitários em condomínios.
“Nesse prédio onde moro tem muitos desses gatos, não é nem que eles se aproximam porque o povo coloca comida, são pessoas ruins que sabem que tem quem cuida aqui e vem deixar na porta, largam é de sacolas aqui na frente, aí vão fazer o que, deixar no meio da rua?”, questionou.
O morador entrevistado afirmou não ser do tipo que detesta animais, o que o incomoda é que, segundo ele, que mora no térreo de seu bloco, há um jardim próximo à janela de sua sala, que foi escolhida pelos quase 10 gatos cuidados no condomínio como caixa de areia. “O cheiro é insuportável e tenho medo de que meus filhos fiquem doente, eu já reclamei, briguei, já peguei as vasilhas de água e comida e levei para o outro lado para ver se escolhem outro lugar”, reclamou.
Questionado sobre uma possível mudança de casa, o homem afirmou que é proprietário do apartamento e, dificilmente, encontraria um outro local atualmente com a mesma qualidade e valor.
Advogados explicam o que pode e o que não pode dentro de condomínios em relação aos animais
Especialistas em Direito Condominial e Direito Ambiental explicam que a proibição de animais em residências ou a restrição à alimentação de animais de rua dentro de condomínios deve obedecer à razoabilidade e às normas legais.
Segundo o advogado Ian Cavalcante, do ponto de vista jurídico, a regra geral no Direito Condominial é a razoabilidade: se o animal não oferece risco, não causa sujeira, barulho excessivo ou desconforto ao coletivo, não há fundamento para uma proibição absoluta. Em entrevista à Todavia, ele ressaltou que esse entendimento é reiterado pelos tribunais, incluindo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), reforçando que a proteção ao sossego e à segurança não pode se transformar em vedação injustificada ao direito de propriedade.
O advogado também esclareceu que, embora o condomínio possa criar regras sobre alimentação de animais de rua para preservar limpeza e segurança, essas restrições devem ser sempre justificadas, proporcionais e aprovadas por deliberação adequada, sob pena de contestação.
“O condomínio pode regular o uso das áreas comuns com base em critérios objetivos de saúde e organização. No entanto, a restrição deve ser justificada, proporcional e aprovada por deliberação adequada, caso contrário, pode ser questionada judicialmente”, explicou.
Questionado pelo Boletim, ele explicou que placas ou avisos espalhados por moradores ou gestão, sem convenção registrada ou regimento interno formal, têm caráter meramente orientativo e não criam obrigação jurídica.
Segundo o advogado Lucas Ribeiro, especialista em causas ligadas à proteção animal, o maior conflito observado atualmente nos condomínios não é a presença de animais dentro dos apartamentos, mas a alimentação de animais que circulam pelas áreas comuns. “Há uma resistência muito grande por parte dos advogados que advogam para esses condomínios, por parte dos síndicos e também por parte das administradoras”, explicou. Ele contextualizou que, no passado, tentava-se restringir a criação de animais dentro dos apartamentos com base em argumentos como barulho ou tamanho do imóvel, mas que tais limitações foram superadas judicialmente.
O advogado também apontou que a resistência atual está voltada para a circulação de animais nas áreas comuns do condomínio, sob alegações de risco à segurança, sujeira ou brigas entre os animais.
“Levou-se essa situação para o judiciário, que também decidiu que podem circular livremente pelas áreas comuns do condomínio. Isso foi superado. E agora estão criando resistência em relação à alimentação desses animais, com a justificativa de que poderiam ralar carros ou tornar o ambiente sujo. Mas isso é um elemento muito frágil. Esses animais, em sua maioria, são dóceis e passam grande parte do tempo dormindo. Geralmente, quem vai alimentar faz a própria limpeza”, ressaltou.
Além da polêmica, o que esses conflitos revelam?
A discussão sobre a permanência e o cuidado com animais de rua dentro de condomínios privados ganhou fôlego, na última semana, após o caso recente em um condomínio na zona Leste de Teresina, onde um cartaz afixado proibiu a alimentação de animais comunitários nas áreas comuns. Os três casos reunidos aqui pela Todavia buscam mostrar que esse não é um caso isolado em Teresina. Esses conflitos recorrentes entre moradores, síndicos e gestores condominiais evidenciam, sobretudo, a ausência de políticas públicas efetivas voltadas aos animais que vivem nas ruas, desamparados.
Sem o apoio que deveria existir, esses animais acabam buscando cuidado onde encontram mãos dispostas, em praças, ruas, comércios e, cada vez mais, nos condomínios, que são espaços privados ou semiprivados onde várias pessoas dividem o mesmo ambiente, mas nem sempre compartilham os mesmos valores e percepções sobre convivência. O fato de grupos de moradores assumirem a responsabilidade por esses animais revela duas realidades: 1) as ONGs de proteção animal, apesar de atuantes, sem o apoio necessário, não conseguem absorver toda a demanda; 2) e o Poder Público, que deveria garantir políticas de castração, abrigo, atendimento veterinário e educação comunitária, chega pouco ou quase nada.
Por isso, cresce a necessidade de regulamentação, clareza jurídica e protocolos que permitam que esse cuidado sem criminalizar quem tenta ajudar. No Piauí, a Lei Estadual nº 8.598/2025 assegura o direito de alimentar animais de rua ou comunitários em espaços públicos e privados, exceto em locais que exijam controle sanitário, como hospitais e cozinhas. O caminho ideal é que esse entendimento avance para que o tempo perdido em brigas possa ser gasto em mais ajuda e humanidade.
Fonte: Boletim Brio