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Seres humanos e demais animais: hora de discutir a relação

10 de dezembro de 2011
9 min. de leitura
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Por Maria Teresa Manfredo
Nos últimos anos manifestações que vêm ocorrendo em diversas partes do mundo sinalizam uma tendência crescente para um novo olhar sobre o tratamento dispensado pelos humanos aos animais. Isso pode ser observado pelas proibições em algumas cidades ou países do uso de animais em circos, ou mesmo em rodeios. Um exemplo que ilustra bem essa tendência ocorreu, em 2010, quando o Tribunal de Justiça carioca recusou um pedido de habeas corpus feito por entidades protetoras de animais para libertar um macaco do zoológico de Niterói (Rio de Janeiro). Apesar de não haver sucesso nessa solicitação específica, em função da justificativa do relator de que um habeas corpus não é um instrumento jurídico para proteger animais, o fato mostrou-se consonante à causa amparada por pensadores como as filósofas Clare Palmer e Martha Nussbaum e o psicólogo Richard Ryder, defensores do chamado abolicionismo animal.
O estadunidense Gray Francione é considerado um dos pioneiros nesse assunto. Doutor em direito, já publicou livros como Animal as a person: essays on the abolition of animal exploitation (2008). O debate que caracteriza esse cenário mostra sua amplitude quando, ao colocar em questão o que significa um habeas corpus para um macaco do zoológico, aponta uma maneira de questionar os limites do sistema jurídico atual, aliada a uma forma de protesto político, que critica uma tradição filosófica e cultural, que o direito apenas normatiza.
Segundo essa tradição de séculos, os animais são inferiores aos seres humanos por não serem dotados de razão, de palavra, de julgamento, de alma. Os seres humanos, portanto, se autodefinem na natureza como seres opostos e superiores aos animais.
A ideia de superioridade do ser humano vem sendo encarada, nessa outra tendência de se relacionar com os animais, como uma visão utilitarista e predadora, que aprisiona os animais, mata-os e os mercantiliza de forma massiva, seja para fins alimentares ou domésticos.
Nas últimas décadas, o que se observa é que estudiosos e militantes estão dedicados a discutir a criação de uma “ética animal”. Essas pessoas, além de reivindicarem a criação de leis que dotem os animais de direitos, formam organizações políticas de proteção aos animais como o Animal Liberation Front (ALF, criado na década de 1970) e o People for the Ethical Treatment of Animals (Peta, criado em 1980).
No mbito acadêmico, vem se desenvolvendo uma nova área de pesquisas chamada “estudos animais”. As investigações nesta linha são interdisciplinares, envolvendo biologia, filosofia, direito, antropologia, literatura e artes.
O panorama que se apresenta na atualidade é, portanto, de uma nova visão de mundo, que vislumbra os animais como seres merecedores de respeito tal qual os humanos, com a proposta de mudar culturalmente o olhar tradicional predominante, que vê os animais como meros objetos para uso humano. é o que afirma Alcino Eduardo Bonella, professor de ética da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) que é, também, membro da International Association of Bioethcis (IAB) e da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB).
Raízes desse novo olhar
A militância pró-animais parece ganhar cada vez mais admiradores e pode se tornar um movimento de forte impacto na sociedade nas próximas décadas. Num período de descrédito das ideologias políticas, seria interessante pensar sobre as origens desse novo olhar.
O sociólogo espanhol Manuel Castells no livro A sociedade em rede defende que, no final do século XX, houve uma reestruturação do modo capitalista de produção que, dentre outras consequências, trouxe mudanças sociais profundas como, por exemplo, um remodelamento da “consciência ambiental”. Nessa nova estrutura social, os movimentos sociais também teriam se modificado, tendendo a serem, de acordo com Castells, fragmentados. Para ele, em um período histórico marcado por expressões culturais efêmeras, deslegitimação das instituições e desestruturação das organizações, cada vez mais as pessoas organizam significados com base em movimentos sociais com objetivo ´ynico, encolhidos em seus mundos interiores. Nessa sociedade de mudanças confusas e incontroladas, as pessoas tenderiam a reagrupar-se em torno de identidades primárias: religiosas, étnicas, territoriais, nacionais, buscando significação social.
Seria esta uma explicação para a crescente ideia da militância pró-animal? Alcino Bonella esclarece que a resposta a esta pergunta pode ser afirmativa, se olharmos para a diversificação e organização de novos movimentos sociais e para a exploração de novos rumos na democracia atual. Ele explica ainda que as raízes desse de novo olhar estão no movimento de libertação dos animais, iniciado mais fortemente na década de 1970, e atualmente presente em vários países na forma de movimento em defesa do bem-estar e dos direitos dos animais. Para ele, tais movimentos estão baseados principalmente na filosofia, em especial nas obras pioneiras de Peter Singer (Animal liberation: a new ethics for our treatment of animals), e de Tom Regan (The case for animal rights).
Silvio Negrão, veterinário e doutor em sociedade e ambiente pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) observa que esse movimento não tem uma ligação direta com movimentos ambientalistas ou ecologistas, pois “muito se focou na necessidade de se preservar e recuperar o ‘meio’ ambiente como uma fonte de recursos naturais capaz de sustentar a vida humana por muitos séculos. A preocupação com os animais selvagens ou não-domesticados apareceu muito depois quando as filosofias políticas ambientalistas começaram a ser decifradas”.
Para Bonella também não há muita ligação entre o movimento de libertação animal e o ambientalista. “HEa até certo estranhamento porque, por exemplo, os defensores dos direitos animais estão interessados em direitos individuais, como o direito individual de não ser aprisionado, enquanto os ambientalistas estão falando em preservação de espécies”. Haveria certa aproximação entre os dois movimentos depois de 2000, quando ambos passaram a criticar a exploração capitalista exacerbada do meio ambiente e o aprisionamento de animais, afirma Bonella.
Sobre esta questão, o biólogo e doutor pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), André Luis de Lima Carvalho, afirma que há pontos em comum entre as preocupações ambientalistas e as da ética animal, mas também pode haver divergências bastante significativas. Uma das convergências é o questionamento e o alerta a respeito da atitude predatória, gananciosa e destrutiva com que o poder econômico e a alienação voluntária das pessoas trataram, historicamente, o mundo natural. “A tendência das agendas ambientalistas é a de adotar uma perspectiva que permanece antropocêntrica, na qual a preservação ou conservação dos ecossistemas mantêm-se, em última análise, atrelada ao valor meramente instrumental desses ambientes naturais para a continuidade da existência humana e sua qualidade de vida”.
Carvalho exemplifica com o caso da construção da usina de Belo Monte, afirmando que os ambientalistas se preocupam acima de tudo com os chamados impactos ambientais em termos de biodiversidade, mas não é uma questão ética para eles saber quantos milhares ou milhões de tamanduás, antas, pacas, macacos, aves, lagartos ou cobras terão suas vidas ceifadas, morrendo afogados nesse processo (com um entendimento de que cada indivíduo dessa população é digno de consideração moral, um semovente cuja vida possui valor em si mesmo).
“Nesse ponto vê-se um problema no que diz respeito à legislação de nosso país. Os interesses dos animais estão inscritos dentro da legislação ambiental, e não de uma legislação mais específica, que contemple os direitos dos animais como indivíduos e não a mera proteção das espécies da extinção. Uma das implicações práticas disso é que criam-se brechas para esforços de retirar os animais domésticos e de fazenda da esfera de proteção da lei, já que cães, gatos, bois e porcos não se encontram sob risco de extinção”, observa Carvalho.
Nasce uma nova forma de se relacionar com a natureza?
Para Sônia T. Felipe, filósofa da UFSC e colunista da ANDA, a centralidade e importância dos animais no movimento de defesa de seus direitos tem a ver com uma nova consciência dos humanos em relação ao fato de que são, também, animais.
Nesse sentido, o veterinário Negrão destaca que a crescente onda de individualismo e isolamento no mundo moderno reforça a necessidade dos seres humanos estarem em contato com outros seres (que sejam ou não humanos), aumentando, assim, a ocorrência e a intensidade de relacionamentos entre nós e algumas espécies animais. “Observa-se, na prática, que todos esses fatores têm contribuído para um número maior de pessoas adotarem animais para compartilhar sua vida e dirimir sua solidão no intuito de encontrar no animal de companhia o amor incondicional”, lembra.
Por consequência, na maioria das vezes, ocorre uma antropoformização dos animais, que passam a ser encarados e tratados como se fossem dotados de atributos humanos esperando-se que reajam da mesma forma que seus tutores ou responsáveis. “Deve-se levar em consideração que cães e gatos estão assumindo grande importância na manutenção da saúde mental e até mesmo física das pessoas. Como consequência, cada vez mais os animais são considerados membros da família, e até mesmo substitutos de filhos e outros familiares. Muitas vezes essa convivência pode ser nociva ao ponto de gerar transtornos comportamentais nos animais”, afirma Negrão.
Para o biólogo Carvalho, atualmente, a imensa maioria das pessoas continua agindo e pensando como se tivéssemos o direito de explorar os animais conforme nossos interesses e conveniências. O pesquisador da Fiocruz explica que ainda vivemos sob um paradigma social antropocêntrico (reforçado pela média, políticos e intelectuais), que estabelece que o homem continua sendo a medida de todas as coisas. “A preocupação com o aquecimento global, por exemplo, é apresentada aos olhos públicos acima de tudo como um risco para a continuidade da espécie humana. É preciso que compreendamos de vez que os animais estão no mundo conosco, e não para nós, esclarece o biólogo.
“Os discursos morais vigentes enfatizam a importância da justiça social, da cidadania, do respeito às diferenças individuais e culturais, o combate às mais variadas formas de discriminação é sexismo, racismo, homofobia, mas os animais geralmente não são contemplados com dignos de direitos é tema que ainda é motivo de chacota”, defende Carvalho.
Ele ainda destaca que, aos poucos, e a duras penas, vêm sendo superados o racismo, o sexismo e, agora, o também o chamado “especismo”, que pode ser definido como a atitude de negar o valor e o direito a uma vida digna a um indivíduo simplesmente por este não pertencer é espécie humana. A ideia da singularidade humana vem caindo por terra, na medida em que os estudiosos do comportamento animal vão revelando a existência de capacidades cognitivas e sensibilidade emocional em cães, macacos, corvos, papagaios é “uma lista de grupos taxonômicos e faculdades mentais que só tende a aumentar, evidenciando a afirmação de Charles Darwin de que as diferenças entre a mente humana e a mente animal são diferenças de grau, e não de tipo”, afirma.
Segundo Felipe, “tendo consciência de si, os humanos podem rever todos os demais conceitos em relação ao que é a natureza, e mudar sua forma de se relacionar com ela e consigo mesmos, especialmente ao voltar a ter noção do quanto estar vivo na condição animal representa de dor e sofrimento, sem discriminação de espécies”.
Fonte: Com Ciência

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