Recentemente um barbeiro na quebrada me disse assim: ”um parente meu vive no interior do nordeste, uma região que não tem água, nem comida, às vezes ele come água com farinha, e sai de manhã para caçar calango ou qualquer animal para comer. Como chegar num cara desse e falar para ele se tornar vegano?”
E o questionamento dele faz muito sentido, porque de fato, existem situações em que as pessoas não têm escolha. No entanto, ninguém está dizendo para pessoas que vivem em regiões extremas ou em situação de fome se tornarem veganas, muito menos que essas pessoas são ruins por consumirem animais.
É necessário entender as condições materiais e a realidade em que estas pessoas estão inseridas, e ter noção de que elas são vítimas de uma distribuição de renda completamente desigual e injusta. Por isso, o veganismo popular é um movimento de libertação animal e justiça social que atua com uma compreensão política, econômica e cultural.
Se olhamos apenas para os hábitos de consumo e criticamos tudo e todos, estamos sendo racistas, xenófobos e complacentes com a fome e a desigualdade social. E não é nada progressista lutar uma causa (animal) ignorando os impactos sociais negativos deste sistema econômico.
A fome e a insegurança alimentar é uma condição estrutural e requer um esforço de várias partes para que um determinado grupo tenha uma refeição completa todos os dias. Portanto, sempre que falamos de qualquer mudança de hábito, é necessário entender que não são todas as pessoas que podem mudar e transformar seus hábitos.
As necessidades básicas de subsistência devem ser supridas minimamente para que uma pessoa decida se quer ou não continuar consumindo animais, ou qualquer outro produto e serviço. Além disso, é preciso ter um bom nível de informação para que essa pessoa possa discernir com consciência e tomar decisões baseadas em suas convicções.
Outro assunto que ele trouxe, foi sobre o suplemento de vitamina B12, que numa alimentação sem nada de origem animal se faz necessário. Mais uma vez uma preocupação correta e coerente.
No entanto, as pessoas que sofrem com insegurança alimentar, ou passam fome, e usando o exemplo do barbeiro, comem água com farinha de manhã e às vezes conseguem comer um calango ou qualquer outro animal não convencional, devem ter diversas deficiências nutricionais, inclusive a de B12. E muito provavelmente a suplementação via intravenosa ou oral seria a melhor opção.
Então, não podemos pegar pessoas que vivem em situações extremas para justificar que o veganismo não é acessível para todos. Porque uma pessoa nestas condições não consegue comer inclusive produtos de origem animal, ela come o que tiver, independente da origem, ela não escolhe, porque precisa sobreviver.
A questão nestes casos é a escassez e a fome, não se a pessoa deve ou não ser vegana.
É fundamental falarmos sobre acesso e qualidade de vida para falarmos em mudanças de hábitos, ninguém merece e ninguém deve viver sem ter um pedaço de pão para comer de manhã.
Todos os indivíduos deveriam ter o básico em casa para tomar café da manhã, almoçar e jantar. Ter frutas, legumes, grãos e cereais na dispensa não pode ser visto como luxo.
Para o fim da libertação dos animais, que hoje vivem uma vida miserável em abatedouros e fazendas industriais, precisamos lutar por um Brasil e um mundo onde as pessoas possam escolher o que comer todos os dias. Porque sem uma boa alimentação popularizada e acessível não é possível construir um mundo mais justo.
Fonte: Terra