Há pessoas que exercem papel de influência na internet, ou seja, com muitos seguidores, que às vezes fazem comentários desconcertados da realidade sobre o veganismo, embora tenham uma visão interessante sobre outros assuntos.
É preciso conhecer o veganismo para abordá-lo
Normalmente isso ocorre em consequência de um pré-conceito ou de um recorte unilateral do que seja o veganismo – o que é muito comum quando alguém julga essa filosofia de vida que é amparada em um imperativo moral sem conhecê-la de verdade.
Há algum tempo, alguém disse que quando os veganos se referem a “humanos” em relação à exploração animal para consumo, eles deveriam identificar não apenas como “humanos”, mas como “humanos brancos”, provavelmente associando com a conclusão de que o consumo em massa de carnes foi culturalizado pelos brancos. Entendi a observação, porém é capciosa.
O uso do termo “humanos” se dá por fator de obviedade. O veganismo é sobre nossas responsabilidades enquanto espécie, independente de cor, etnia ou qualquer outra coisa. Não se trata de redução de responsabilidades.
Mas se dizemos que os “brancos são os culpados pela exploração de animais”, isso pode significar então que está tudo bem se os outros continuarem explorando e consumindo animais, já que “teriam culpas menores”.
Todos que consomem animais têm alguma culpa
Do ponto de vista do veganismo, qualquer ser humano envolvido na desnecessária exploração e objetificação animal contribui com esse sistema, de forma consciente ou inconsciente, já que atua como um reforçador dessa trivialização em menor ou maior proporção. Se me alimento de animais, não interessa a qual grupo étnico pertenço, porque ajudo a endossar esse sistema exploratório.
Sim, “os brancos” foram responsáveis pela introdução do sistema industrial de criação de animais após a Segunda Revolução Industrial, até por possuírem maior controle dos meios de produção. Não creio que isso seja novidade. Não conheço ninguém que negue isso. Contudo, em menor ou maior nível, todos os povos humanos contemporâneos estão envolvidos na exploração e na objetificação animal.
O que muda basicamente são as motivações dessa exploração e desse consumo. Há minorias, como os inuítes e alguns outros povos nativos que vivem em áreas remotas, que fazem isso, de fato, por uma questão de sobrevivência.
Ilusão do que é essencial na alimentação
Há populações maiores, de bilhões de pessoas, às quais pertencemos, que estão nessa por fatores históricos e culturais. Afinal, desde muito cedo, nós, assim como nossos ancestrais, somos motivados a consumir animais porque estamos imersos na ilusão de que se alimentar de seres não humanos “é parte essencial da nossa alimentação”, por força de uma propaganda que visa apenas o lucro e que se fortaleceu a partir do início do século 20.
Outro apontamento que já testemunhei foi o de que quem compra uma caixinha de nuggets pra dividir ou “uma linguiça da mais barata” para alimentar a família não tem outra opção de proteína. Entendo a observação, porém, o exemplo acima se enquadra na frágil crença na necessidade da proteína de origem animal.
Não seria mais fácil descartar os nuggets e a linguiça? Afinal, são alimentos processados e nada saudáveis, logo não contribuem para a manutenção da saúde de ninguém. Neste caso, seria melhor consumir só a proteína do feijão ou até mesmo comprar uma lata de ervilha – que também tem proteína e pode custar R$ 2 dependendo da localidade.
Negamos que, por falta de informação ou não, muitos comem animais porque gostam ou por hábito; e até mesmo quando escolhem as chamadas “piores opções” ou as “opções mais baratas”. Afinal, que tipo de nutriente essencial à vida alguém pode obter consumindo empanados repletos de sódio e gordura, assim como linguiças e salsichão?
Por que arroz, feijão e carne?
Não seria um gesto de amor ou altruísmo alertar as pessoas sobre os malefícios desses alimentos em vez de defender esse consumo apenas para fazer oposição ao veganismo? E por que as pessoas insistem no discurso que devemos comer arroz, feijão e carne?
Mero costume, e a carne quase sempre é destacada até com mais importância do que outros alimentos vegetais nutritivos e mais baratos. Duvida? Procure por promoções em feiras e mercados. Muita gente se surpreenderia com esse universo de possibilidades.
Quando me falam da impossibilidade em ser vegano, costumo contar a história do poeta e filósofo sírio Al Ma’arri, que viveu no século XI e enfrentou grandes períodos de miséria em sua vida. Ele se alimentava principalmente de feijões e lentilhas e teve uma velhice tranquila.
Al Ma’arri não consumia nada de origem animal. Então como alguém pode dizer que hoje é impossível não se alimentar de animais? Que hoje é difícil ser vegano se há centenas de anos outros trilharam esse caminho?
Veganos não são os que mais consomem agrotóxicos
Alguém disse também que ser vegano “não é muito positivo porque veganos consomem agrotóxicos demais”, já que priorizam vegetais. É importante entender que veganos também lutam contra o uso de agrotóxicos, que por sinal é consumido em maior quantidade por quem consome animais do que por quem não consome.
Afinal, além dessas pessoas não consumirem só carne, os animais criados para consumo se alimentam de enormes quantidades de vegetais contaminados com defensivos agrícolas, para não dizer pesticidas, praguicidas ou biocidas – o que favorece a bioacumulação.
É fácil concluir isso ponderando que o ser humano tem predileção por matar e consumir animais herbívoros, já que a ideia de consumir um animal que comeu outro animal o enoja, a não ser quando ele é o próprio comedor de animais, o que é um ruidoso paradoxo.
Sobre a alegação das pessoas não terem tempo para alimentarem-se melhor, por isso comem “qualquer coisa de origem animal”, que é “mais prático”, creio que tenha mais relação com desinformação do que com tempo.
Mais desinformação do que falta de tempo
Não considero a falta de tempo uma justificativa válida para não se alimentar um pouquinho melhor. A maioria dos veganos que conheço têm uma rotina bem atribulada. Há aqueles que saem de casa às 4h e retornam à noite.
Quando o tempo é escasso, dedicam algumas horas do final de semana a prepararem alimentos e congelá-los para consumirem no decorrer da semana. Ou então improvisam com alimentos de rápido consumo, até mesmo frutas.
Sou da seguinte opinião, se você não se importa com a sua própria vida, e prefere sabotá-la consumindo alimentos ruins de origem animal, siga em frente, mas saiba que talvez amanhã você não esteja aqui para amparar seus filhos e outros familiares. Não há nada que justifique o consumo de animais no mundo em que vivemos, muito menos o pretexto da saúde.
Outro ponto de reflexão é que a idealização da “qualidade de vida” associada ao consumo de “carnes nobres”, que parte de um equivocado senso comum, e reproduzida por tanta gente, é a mesma dos glutões burgueses britânicos da era vitoriana, dos abastados da Grécia Antiga e dos imperadores romanos, que faziam da carne um símbolo de ostentação, de segregação social.
Oprimido agindo como opressor
Sendo assim, será que é coerente o oprimido que diz ver o veganismo como impraticável e que sonha com o um “alto consumo de carnes nobres” buscar tomar parte em hábitos perpetuados a partir de uma consciência opressora? Não seria isso uma contradição? Ou será que o discurso de oprimido deve girar apenas em torno do que não diz respeito às nossas próprias inconsistências?
Há quem diga também que veganos brancos fazem parte de “uma civilização baseada na conquista e submissão de outros povos, e criam narrativas que sempre os coloca no centro.” Como veganos podem se colocar no centro se eles lutam contra o antropocentrismo e o especismo? Tomar para si o protagonismo de algo pode ser uma falha humana, mas sem relação com ser vegano. Uma rápida consulta sobre o conceito de veganismo rebate essa concepção não apenas incorreta como capciosa.
Eu já acredito que ao defender o consumo de animais, qualquer um beneficia uma consciência opressora, já que se uma pessoa financia esse sistema, usufruindo do que ele oferece, ela tem responsabilidade sobre isso, não importando sua cor ou etnia. Até porque quando falamos em objetificação ou coisificação visando lucro o que importa é apenas uma coisa – números, tanto faz a cor ou etnia de quem está consumindo ou pagando.
Já testemunhei também alguém afirmar que veganismo é consequência de um “pensamento eurocentrado”, que visa manter os privilégios dos brancos e seus descendentes – e que “por trás disso” ainda persiste a mão dessa cultura sobre outras.
Cuidado com as inverdades
Veganos podem ter atitudes equivocadas como qualquer pessoa que luta por outra causa. No entanto, é importante ter o cuidado de não reproduzir inverdades, dando a entender que o veganismo é um movimento de “perpetuação do poder dos brancos”.
Em 1944, o movimento moderno vegano surgiu sim e formalmente por iniciativa de um inglês, logo caucasiano, chamado Donald Watson. Sim, em uma realidade europeia, mas por interesse de um carpinteiro que vivia na pequena Keswick, e que não tinha qualquer pretensão financeira em criar um movimento, mas apenas um anseio de fazer com que outras pessoas, assim como ele, passassem a reconhecer os animais como sujeitos de uma vida.
Watson era da classe trabalhadora, não pertencia a qualquer elite e se dedicava a isso de forma voluntária. Não vejo sentido em rivalidades desnecessárias que tencionam desmerecer uma causa simplesmente porque do alto de nossas predileções individuais não nos interessa porque não são sobre nós, mas sim sobre outras espécies.
Todo tipo de exploração é tema de grande urgência se envolve vidas imersas em um universo de desconsideração. Nesse momento, o mais importante talvez seja um outro olhar para além do que chamamos de “nossas prioridades”.
Direitos animais não são sobre privilégios
Há muitas pessoas de causas humanitárias, e me incluo entre elas, que se tornaram veganas e ativistas dos direitos animais. O veganismo, como uma questão de justiça social não concorre com outras causas. Muito pelo contrário.
É importante entender que a defesa dos direitos animais não é sobre privilégios para não humanos, mas sim sobre o direito à vida, o direito de não sofrer por intervenção humana. Veganos têm o claro entendimento de que os animais são sencientes e conscientes.
Eles não deveriam existir para nos servir, já que isso demanda condicionamento, privação, sofrimento e morte. Infelizmente, matamos por ano até 70 bilhões de animais terrestres nos matadouros e até 2,3 trilhões de peixes. Isso deveria ser aceitável? É um motivo bastante justo para abdicar desse consumo.
Sempre que me deparo com alguém publicando algo contra o veganismo, imagino se essa pessoa tem ideia do impacto de seu discurso; se ela sabe a quem está beneficiando. Por quê? Porque veganos lutam contra a desvalorização da vida animal, e quem se empenha em desqualificar o veganismo, dependendo do discurso, pode contribuir involuntariamente com quem se beneficia disso.
População humana, animais e natureza
Um exemplo? Muitas pessoas que dizem lutar por justiça social ignoram o fato de que a criação de animais para consumo e a produção de alimentos para nutrir esses animais gera muito dinheiro nas mãos de poucas pessoas no mundo todo.
Além disso, fora as consequências para os animais, há também a comprovada agressão ao meio ambiente, como registrada na Amazônia, onde a agropecuária responde por grande parte do desmatamento, impactando em áreas protegidas.
Creio que não seja nenhuma novidade que grandes produtores e empresas desse ramo buscam favorecimento e flexibilização legal para crescerem e lucrarem cada vez mais. Então, o que eles fazem? Eles patrocinam políticos ou até mesmo se lançam na política para legislarem em causa própria – claramente também perenizando as desigualdades sociais.
Nesse cenário, quem são os maiores prejudicados? A população humana, os animais e a natureza. Em síntese, ser vegano só é difícil quando você não quer ser vegano. ignore as falácias e equivocadas problematizações. Se você quiser, chegar lá será apenas reflexo do tamanho de sua vontade.
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