A expansão urbana e a consequente perda de habitat têm feito com que animais silvestres sejam eletrocutados e, em casos mais graves, mortos ou até mesmo condenados a viver para sempre em cativeiro. Entre 2020 e 2024, apenas o Centro de Triagem de Animais Silvestres de Goiânia (Cetas) recebeu 143 animais vítimas de choque elétrico.
O ápice de animais resgatados ocorreu em 2022 e 2024, com 34 registros cada. O número representa um aumento de 13,3% (se comparado a 2021) e 21,4% (se comparado a 2023), conforme levantamento do Cetas a pedido do Jornal Opção.
Os dados, porém, são subnotificados conforme o chefe do Cetas e superintendente substituto do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Goiás, Leo Caetano. Isso ocorre porque o solicitante não informa ou não sabe informar à equipe se o animal encontrado foi vítima de descarga elétrica, seja nas redes de alta tensão ou em fios soltos.
“Isso ocorre principalmente com as aves. Às vezes eles batem no fio durante o voo e morrem mais facilmente com o choque e a queda, e acabam não entrando aqui no Centro de Triagem”, explica.
Mesmo com as aves tendo o maior nível de mortandade, os primatas são os principais animais vítimas das descargas elétricas. O sagui-de-tufos-pretos, por exemplo, é responsável por 53,1% (76) dos atendimentos no período. A lista também conta com 12 bugios e 11 macacos-prego, além de 44 vertebrados endotérmicos – incluindo a arara-canindé, ameaçada de risco de extinção.
Leo diz que o índice está diretamente ligado ao crescimento dos condomínios fechados e do aumento de zonas residenciais em periferias – normalmente em locais com vegetação, como matas. Com a expansão urbana, as redes de energia elétrica também se expandem e, então, passam a ser as “árvores” e “galhos” dos bichos.
“Alguns animais, como as aves, usam os postes como locais para ninho. No caso dos primatas, eles acabam usando os cabos como meios de passagens entre parques e outras árvores. Se a gente tivesse a fiação toda enterrada, não teria esse problema”, reforça o chefe do Cetas.
Mortandade
Os saguis são os pacientes com maior taxa de recuperação devido a resistência e o fato do resgate ser mais rápido pelo porte do animal. Os bugios, por outro lado, já tem um processo de recuperação mais difícil, visto que podem permanecer se movendo por dias mesmo estando ferido – fato que pode ampliar infecções e dificultar o tratamento.
Dos 143 animais que chegaram ao Cetas, cerca de 70% (100) foram reintegrados novamente à natureza. Os outros 30% (43) não resistiram aos ferimentos ou não conseguiram voltar ao habitat devido a sequelas, como amputamento de membros. Nestes casos, eles são condenados a viver em cativeiro no Zoológico e/ou em empreendimentos de fauna.
“Varia muito de cada caso. Porém, a gente não teve nenhum caso recentemente que foi para empreendimento de fauna. Os que a gente teve, que chegaram com um membro já amputado por conta do choque, acabaram vindo a óbito”, conta a veterinária do Cetas, Jessica Rocha Gonçalves.
A profissional diz que além de queimaduras e perda de tecido pelo choque, os animais também costumam ingressar no Cetas com trauma crânio-encefálico. As regiões mais atingidas costumam ser as patas, principalmente as dianteiras.
Os membros torácicos e pélvicos de alguns animais, principalmente o bugio, costumam demandar maior cuidado. O tratamento pode levar até três semanas, mas a casos em que o bicho costuma se recuperar mais rápido, como no caso do macaco “bochecha” (foto em destaque).
O primata chegou ao Cetas em 2024 com queimaduras nas pernas, rosto e braços – que também contavam com lesão por perder um dedo. Em pouco mais de uma semana, ele já estava apto a voltar à natureza devido aos cuidados realizados com pele de tilápia – técnica inovadora desenvolvida em 2019, que foi adaptada por Jessica para ajudar na cicatrização.
“Apesar de a gente conseguir fazer todo o tratamento de ponta para eles, é muito ruim você ver que um animal que vive em conjunto na sociedade com a gente aqui, que está se machucando por conta de fiação que poderia ser subterrânea. Para mim é a parte mais difícil do tratamento”, reforça.
Leis não protegem animais
O resgate de animais vítimas de choque elétrico é realizado quase que exclusivamente pelo Corpo de Bombeiros. Na legislação brasileira, não existe nenhuma lei que prevê a prevenção e nem o socorro de animais que sofrem descargas elétricas, de acordo com a presidente da Comissão Especial de Direito Animal (Ceda) da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Goiás (OAB-GO), Pauliane Rodrigues.
Tramita na Câmara Federal desde 2023 um Projeto de Lei (PL), de autoria do deputado federal Delegado Matheus Laiola (União-PR), que prevê, entre outras medidas, envolver fios e estruturas de baixa, média e alta-tensão dos postes de distribuição e transmissão de energia elétrica, a fim de prevenir os animais silvestres. O projeto, porém, está estagnado.
“O que a gente tem é somente a Lei de Crimes Ambientais, que trata ali da questão de matar, apanhar, mas não tem nenhuma legislação específica sobre essa temática, sobre choque elétrico”, esclarece.
No entanto, mesmo não tendo leis específicas, empresas como Equatorial, podem ser condenadas. Neste caso, é necessário comprovar que a empresa foi negligente. Procurado, o Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) informou que não é possível identificar processos de forma específica.
Em nota, a Equatorial Goiás informa que segue rigorosamente as recomendações da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), através da normativa de número 1.000, que garante a segurança e manutenção adequada da rede. Em casos de acidentes e resgates, a concessionária atua, quando necessário, com o Corpo de Bombeiros para desligar a rede temporariamente e auxiliar na retirada do animal (veja nota completa abaixo).
Desmatamento
Em novembro de 2024, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou dados do Sistema Prodes referentes ao desmatamento em todos os estados do Brasil, no período de 1º de agosto de 2023 a 31 de julho de 2024. Goiás foi o terceiro estado com maior redução percentual no bioma Cerrado no período, com 48,8%, atrás do Distrito Federal (72,2%) e da Bahia (63,3%).
Foi a maior redução percentual da série histórica, iniciada em 2001. Em números absolutos, são 411,9 km² de vegetação suprimida em 2023/2024, enquanto que em 2022/2023 foram 804,3 km². O recorde anterior havia sido registrado em 2019 (pouco mais de 668 quilômetros quadrados).
Além de 2019, os anos com menores números absolutos foram 2016 (671,7 km²), 2020 (733,6 km²) e 2018 (742,5 km²). Entre os estados em que houve aumento do desmatamento, se destacam São Paulo (112,8%), Paraná (33,3%) e Pará (14,2%).
De modo geral, o desmatamento no Cerrado caiu 33% em 2024, na comparação com o ano anterior, segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado (SAD Cerrado), desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). A supressão vegetal no segundo maior bioma do país atingiu 712 mil hectares no ano passado – área maior do que o Distrito Federal. Em 2023, foram 1 milhão de hectares de mata desmatados.
Atualmente, cerca de 62% da vegetação nativa do Cerrado está dentro de propriedades rurais privadas, submetidas às regras do Código Florestal, que permitem o desmatamento de até 80% da área total. A maior parte do desmatamento ocorreu justamente nessas áreas particulares.
Nota da Equatorial na íntegra:
“A Equatorial Goiás informa que segue rigorosamente as recomendações da Agência Nacional de Energia Elétrica, através da normativa de número 1.000, que garante a segurança e manutenção adequada da rede. Nesses casos, a ANEEL determina que a responsabilidade das distribuidoras em todo o Brasil é manter o sistema nos padrões exigidos e isso vem sendo feito em Goiás. Mesmo assim, os acidentes com animais, como aves, por exemplo, podem acontecer. Nesses casos, a concessionária atua, quando necessário, com o Corpo de Bombeiros para desligar a rede temporariamente e auxiliar na retirada do animal”.
Fonte: Jornal Opção