Os laços afetivos entre tutores e seus animais domésticos pode substituir o desejo de formar uma família com filhos? No Distrito Federal, diversos casais descartaram a maternidade, preferindo formar núcleos multiespécies, compostos por humanos e seus animais domésticos. O comportamento representa uma quebra do modelo tradicional de família constituída por marido, mulher e filhos, refletindo uma nova forma de convivência e afeto.
De acordo com o último levantamento da Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF), a capital federal tem, atualmente, uma população estimada de 3.010.881 habitantes, sendo que 60% deles tutelam animais domésticos. Entre as residências entrevistadas, 41,9% têm cães e 11,1% possuem gatos.
O comunicólogo Maurílio Nogueira, 22 anos, e o secretário Leandro Lima, 30, estão juntos há dois anos e, embora tenham considerado a adoção de uma criança, decidiram que a família deles seria composta apenas por animais domésticos. “Quando nos conhecemos em uma rede social, logo percebemos que compartilhávamos algo em comum: o amor pelos animais e a decisão de não ter filhos”, relata Maurílio.
Atualmente, o casal tem sete gatos, seis fêmeas e um macho, além de um periquito e um peixe de aquário. “Sempre fui muito apegado aos animais, a ponto de cursar um semestre de Medicina Veterinária. Embora tenha deixado esse sonho de lado por falta de tempo, minha paixão pelos animais permaneceu. Quero ser conhecido como ‘o velho dos gatos’ quando me aposentar”, brinca Maurílio.
Ele conta que o parceiro, Leandro, cuidou dos sobrinhos durante grande parte da vida e sabe o quão desafiador é criar uma criança. “Nós dedicamos todo o nosso amor e cuidado aos nossos filhos de quatro patas, levando-os ao veterinário regularmente, comprando a melhor ração e sempre oferecendo muito carinho, já que eles não podem expressar suas necessidades como nós, humanos”, afirma.
Casados há 20 anos, os servidores públicos Garben Ellen Ferreira, 56, e Carmelo Souto, 60, sempre tiveram uma rotina intensa de trabalho e estudos. “Quando fiz 35 anos, senti o meu relógio biológico apitar. Um dia, levamos meu sobrinho ao shopping e ele, como toda criança, corria e se escondia entre as roupas. Eu e meu marido nos olhamos e dissemos: ‘não temos mais energia para isso’. Foi nesse momento que decidimos que não teríamos filhos”, relembra Garben.
O casal tem duas gatas e uma cadela, todos resgatados das ruas. Para Garben, ter filhos apenas para satisfazer expectativas sociais não faz sentido. “Muitas mulheres sentem que só são validadas se casarem e tiverem filhos, mas não acredito que a maternidade seja a única forma de realização feminina”, defende.
A alegria que os animais trazem ao casal está presente nos pequenos momentos do cotidiano. “Às vezes, minha gata mia para me avisar que meu marido chegou do trabalho e corre até a porta, deitando-se com a barriga para cima, esperando um carinho”, conta Garben com satisfação. Eles pretendem continuar adotando mais animais que precisem de um lar.
Multiespécie
O Projeto de Lei 179/23 propõe regulamentar o conceito de família multiespécie, reconhecendo os animais domésticos como membros legítimos da unidade familiar. A proposta, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, busca estabelecer normas para situações como divórcios, guarda compartilhada e regulamentação de visitas envolvendo animais domésticos. O texto também prevê o direito dos animais à Justiça para defesa de seus direitos materiais e morais.
Em processos judiciais, o tutor do animal será seu representante legal, mas em caso de impedimento, a Defensoria Pública ou o Ministério Público poderão intervir. O projeto também permite que os animais sejam herdeiros e sejam incluídos em testamentos, garantindo que os direitos dos animais sejam preservados.
Vínculo e saúde mental
A engenheira geotécnica Ana Beatriz Nobre, 30, e sua companheira Giovanna Miranda Leal de Sousa, 27, técnica de distribuição, sempre souberam que não queriam ter filhos. “Para nós, essa escolha independe da orientação sexual. Está mais relacionada à dedicação que uma criança exige, aos custos e às limitações impostas ao estilo de vida”, explica Ana Beatriz.
O casal adora animais e decidiu que poderia oferecer a eles o cuidado e os recursos necessários. Atualmente, tem três cães da raça dachshund: Picles Rogério, Bacon Antônio e Cheddar Francisco. “Quando sentimos que podíamos garantir tudo o que um animal precisa, adotamos nosso primeiro cachorro”, lembra Ana.
Trabalhando em home office, Ana Beatriz encontrou nos animais uma companhia essencial para sua saúde mental. “Sofro de ansiedade e, antes de ter os cães, me sentia sozinha em casa. Hoje, quando percebo que estou prestes a ter uma crise, faço uma pausa no trabalho e brinco com eles. A diferença é enorme”, garante.
Para a psicóloga Mariana Frota, pós-graduada em teoria e prática psicanalítica, o conceito de família e de casal está em transformação. “A presença de animais nas famílias tornou-se uma opção válida. Deixamos de vê-los como meros objetos e passamos a considerá-los membros da família. Em uma perspectiva simbólica, eles proporcionam alegria e, às vezes, preocupação e tristeza, assim como filhos ou outros parentes”, afirma.
A psicóloga clínica Alessandra Araújo ressalta que os animais desempenham um papel crucial na saúde emocional dos tutores. “A relação com um animal doméstico proporciona um profundo senso de conexão emocional, com amor incondicional e apoio, que são essenciais para o bem-estar. Esse vínculo libera neurotransmissores como a ocitocina, promovendo sentimentos de afeto e alívio do estresse”, explica.
Segundo Alessandra, os animais podem ser uma fonte de cura, ajudando na socialização e na criação de rotinas, especialmente para aqueles que enfrentam dificuldades emocionais. “Cuidar de um animal oferece propósito e estrutura, promovendo resiliência e bem-estar para os tutores”, finaliza.
Fonte: Correio Braziliense