A restauração da floresta não pode parar no plantio de árvores. Sem animais para dispersar sementes, controlar populações e manter ciclos ecológicos em funcionamento, as florestas tropicais se tornam paisagens estéreis, silenciosas e condenadas. Essa é a premissa que guia o trabalho da ONG Refauna, dirigida pelo biólogo Marcelo Rheingantz, doutor em Ecologia pela UFRJ, que há mais de uma década lidera ações pioneiras de reintrodução de fauna nativa em fragmentos da Mata Atlântica.
No programa “Brasil Sustentável”, Marcelo falou sobre a urgência de “re-faunar” ecossistemas degradados, explicou os bastidores das translocações de espécies e defendeu que restaurar a vida selvagem é também uma forma de enfrentar a crise climática.
Inspirado no conceito de trophic rewilding, popularizado em iniciativas europeias, o termo “refaunação” foi cunhado no Brasil para designar a reintrodução de espécies nativas recentemente extintas de determinadas áreas, com o objetivo de restaurar funções ecológicas essenciais. “A gente advoga por colocar de volta espécies que já existiram nesses territórios e que desapareceram, muitas vezes por ação direta humana, como caça ou fragmentação de habitat”, explica Marcelo.
Diferente de ações que utilizam espécies exóticas para tentar reequilibrar ecossistemas, como bois e cavalos na Europa, a Refauna trabalha com espécies brasileiras, respeitando a complexidade e o endemismo de biomas como a Mata Atlântica.
As estratégias adotadas pela ONG incluem dois principais tipos de translocação: a reintrodução – quando uma espécie desapareceu totalmente de uma área – e o reforço populacional – quando ela ainda está presente, mas em número reduzido ou com baixa diversidade genética. Em ambos os casos, animais são cuidadosamente deslocados de criadouros ou áreas naturais para os fragmentos-alvo, onde passam a viver sob monitoramento.
Mas a decisão de reintroduzir uma espécie não é simples: “Precisamos ter certeza de que a causa da extinção local foi resolvida. É um trabalho quase de detetive entender por que aquele animal sumiu dali e se o ambiente está pronto para recebê-lo de volta”, destaca.
Mata Atlântica: um quebra-cabeça incompleto
A Mata Atlântica, que já cobriu mais de 1,3 milhão de km² do território brasileiro, hoje resiste em apenas 12 a 16% de sua extensão original e a maior parte dos fragmentos tem menos de 100 hectares. “É como montar um quebra-cabeça com peças faltando. Sem fauna, essa floresta não se regenera”, diz Marcelo. “Quatro em cada cinco árvores tropicais dependem de animais para dispersar suas sementes. Se os bichos somem, a floresta deixa de se renovar.”
Um estudo coordenado por seu laboratório mostrou que mamíferos de médio e grande porte perderam, em média, 88% da sua distribuição original na Mata Atlântica – índice semelhante ao da perda florestal. “Os dados se confirmam: estamos vivendo a sexta grande extinção em massa, a primeira causada por uma única espécie, a nossa.”
Um dos projetos mais emblemáticos da Refauna ocorre no Parque Nacional da Tijuca, no coração do Rio de Janeiro, onde foram reintroduzidas cutias-vermelhas, que são pequenos roedores frugívoros essenciais para a regeneração de algumas espécies arbóreas. Antes da reintrodução, frutos da árvore conhecida como “cutieira” apodreciam no chão, sem ninguém para dispersá-los.
“Esse parque é o mais visitado do país, abriga o Cristo Redentor e é uma ilha de floresta cercada por urbanização. Mesmo assim, estava silencioso, sem seus animais. Hoje, recebemos fotos e vídeos de visitantes encantados ao reencontrar a fauna. Isso mostra que restaurar ecossistemas também restaura a conexão das pessoas com a natureza”, afirma Marcelo.
A reintrodução de espécies não é apenas uma ação de proteção. Segundo Marcelo, ela também contribui para a mitigação da crise climática. Animais ajudam a manter os fluxos de carbono na floresta, regulam o microclima, retêm água no solo e influenciam até o regime de chuvas. “Uma floresta funcional é uma floresta viva. E para estar viva, ela precisa dos seus bichos”, reforça.
Educação e mobilização como parte da solução
Além do trabalho científico e ecológico, Marcelo defende que a educação ambiental e o engajamento social são fundamentais. “As crianças de hoje já nascem com uma consciência ambiental maior do que a nossa. A solução passa por elas, mas também depende das nossas decisões agora, como votar em representantes comprometidos com a causa ambiental e combater o greenwashing.”
A ideia de que uma floresta sem fauna é uma floresta condenada vem do conceito de “Síndrome das Florestas Vazias”, do ecólogo Kent Redford. “Não basta ter árvores. Se não há vida animal, aquele ecossistema está morto por dentro”, resume Marcelo. Esse diagnóstico guia as ações da Refauna e inspira uma nova forma de pensar a conservação no Brasil: mais ativa, mais ousada, mais conectada com a vida.
Marcelo recomenda as séries “Nosso Planeta”, narrada por David Attenborough, e “Os Parques Nacionais Mais Fascinantes do Mundo”, com narração de Barack Obama. Para quem deseja se aprofundar, os livros “A Ferro e Fogo”, de Warren Dean, e “A Gap in Nature”, de Tim Flannery, são leituras essenciais.
Fonte: Brasil 247