Ainda é tabu dizer “não, obrigado, não como carne” neste nosso 2008, apesar da efervescência de informações e acesso fácil a todas elas. Ainda as pessoas olham como se estivesse à sua frente um seguidor de ritual excêntrico, que, na busca pelo ineditismo, restringe seus prazeres gastronômicos, talvez em troca da vida eterna. Ainda as pessoas não se furtam a fazer uma expressão mezzo desconfiada mezzo surpresa. Ainda fazem silêncio por alguns instantes – momento em que elaboram uma opinião do tipo bate-pronto – antes de começar a dizer “ah, sim, pois o meu primo também etc.” Todo mundo tem um primo ligado ao vegetarianismo, veganismo, libertação animal, antiespecismo ou afins. Provavelmente é alguém que só gosta muito de cachorro e/ou tem ‘comido mais peixe atualmente’, vai saber.
O fato é que, apesar de todo o avanço no conhecimento, o cidadão médio ainda vincula o ‘não comer carne’ a uma tentativa de emagrecer, de melhorar a aparência da pele, de economizar conta de supermercado, de comer mais salada ou, ainda, de levar uma vida mais light. Semelhante a parar de fumar.
Em um Estado como o Rio Grande do Sul, o comer carne é um evento social, seja na reunião das famílias italianas – ou da comunidade toda, nas festas religiosas –, seja na suposta tradição gaúcha do churrasco. Dizer “vamos marcar um churrasco, uma hora dessas” é o sinônimo especista para “vamos combinar alguma coisa”, valendo para reunião de turma de faculdade, recepção a executivos estrangeiros ou comemoração pelo término de algum ciclo obrigatório da vida.
Então algum chato diz “não, obrigado”.
Como se cuspisse em todo um horizonte de prazeres, confraternização, convivência entre os seus e regozijo digestivo disponíveis após uma simples compra de carne crua no açougue. Uma desfeita, já que todos ali estão ansiando para que o final de semana chegue logo, para ir correndo comprar o carvão. E “o certo é saber que o certo é certo”, canta Caetano Veloso. Quem segue seitas exóticas com mandamentos excêntricos está na verdade testando a paciência dos demais, esses que copiam o comportamento do vizinho da porta ao lado e bradam suas escolhas como sendo próprias. Tanto as eleições quanto o kit cerveja-praia-futebol-carnaval-churrasco-televisão estão aí para carimbar o que eu digo.
Ainda é difícil enfrentar uma sociedade que prega valores contraditórios e esquizofrênicos, que morre de pena dos pandas e da cadela Preta, mas chora de emoção ao ouvir a “Ave Maria” entoada na abertura dos rodeios, reúne a família no Natal para celebrar a vida com morte, blablablá… e vê com desconfiança aquele sujeito que disse “não, obrigado” ao prato que a matriarca preparou com tanto esmero. Só pode ser um excêntrico, claro.