O ciclo de aquário passou e cá estou, atrás de um texto escrito exatamente há um mês atrás, dia 25 de janeiro, aniversário de São Paulo (e do meu). Envolta em emoção pela data, acabei dando voltas pra falar de uma cidade torturada/torturante, de um signo, do veganismo, de mim um pouco. Então foi por isso, quando falo de mim a coisa não anda, desanda, mas, então vamos lá, resolvi reescrever, deletar, acrescentar, chegar ao núcleo, não deixar a homenagem na gaveta.
São Paulo é aquariana. Até aqui nenhuma novidade. Como já disse, fez aniversário dia 25 de janeiro. E aquela mania que temos de falar de cidade grande: sua poluição, congestionamento, enchentes, crimes, indiferença, infrações por todos os lados e de todos os tipos. A despeito dos adjetivos/substantivos, queiramos ou não, respeito aos astros, a cidade é futurista. Talvez por ter ali, a maior concentração por metro quadrado de gente vegan hoje no Brasil. Por ser sim a maior cidade do País, o reduto, o ponto de concentração do vegetarianismo. Não fiz nenhuma pesquisa, não sou cientista nem trabalho no IBGE. Por intuição, por seu signo, por minhas andanças pelo País, pelas pessoas que ali conheci pessoalmente ou não, é que me atrevi a dar esta opinião. Penso que por conter tantos corações compassivos ao sofrimento animal, tanto amor pulsando/lutando pelos que não tem voz, tanta compaixão que resiste ao horror diário de mortes humanas e não humanas São Paulo não pode ser perversa. Não tanto quanto nos querem fazer crer. Uma nova cidade dentro de outra, surgindo, evoluindo, sendo construída por Ninas, Georges, Silvanas, Simones, Marias, Fabianas, Danielas, Antônios, Fábios e que seja, um só Levai, definitivamente não pode ser conhecida apenas por sua sina triste de ter crescido sem pai nem mãe, de ter crescido de forma desenfreada, sem cuidados, sem limites, sem freio nenhum. Tanto desprendimento, engajamento e compaixão pelos animais, de simpatia com a tragédia do outro ser, o desejo de minorá-la, um sentimento imenso de ternura pelo sofredor, a vontade de trocar de lugar com ele se assim o pudesse… São características não exclusivas de uma cidade, ou de um signo, mas com certeza o são e só são qualidades de pessoas do bem, de uma cidade que tenta mudar, que não pode nem deve decepcionar. Que precisa dar a lição, o primeiro passo, por seu tamanho, condição, natureza e posição astral. Abraçar o veganismo, os direitos dos animais, mostrar seu sofrimento, seu confinamento. Levar informação a quem não tem. Revelar o que sempre foi escondido. Provocar indignação. Despertar mais compaixão. Iluminar corações.
Pois já falei mal de São Paulo (alguém ainda não?) assim como de muitas outras cidades, inclusive e principalmente a minha, aquela onde nasci. Por seus desmandos, seu descaso com os bichos, com as plantas, com as árvores, com os velhos, com suas crianças. Nesta época, ainda meio adolescente no pensar e agir, com e por tanto sofrimento, achei que poderia viver separado. Separada da maioria das pessoas que considerava injustas, mesquinhas, egoístas e cruéis com as pessoas, com os animais, com as coisas da natureza. E assim vivi muitos anos imersa num mundo vamos dizer assim ‘aquariano’, humanitário, mas solitário, até descobrir que, diferente de alguns poucos hoje, animais, não dispunha de bagagem instintiva suficiente para garantir minha sobrevivência. Precisava do outro, outro semelhante e do outro que a linguagem articula enquanto lugar de referência e significações. Descobri que tinha ascendente em capricórnio, eu, uma aquariana típica. Uma força desconhecida, escondida por tanto tempo. Gostar e não gostar da cidade grande, esconder a raiva, a fúria, a inconformidade com a crueldade, o desespero pelos desesperados. Como esquecer os olhos dos enjaulados? Foi difícil conectar meu até então aéreo mundo com as raízes de um solo que me negava a pisar, não por covardia ou por medo da dor, mas por não saber ainda por onde começar a lutar, a andar de verdade. E num descobrir contínuo, percebi no outro, no campo da linguagem, que podemos tornar o mundo apreensível, que podia comunicar aos outros o que era da ordem da minha vivência singular.
Encontrei na São Paulo, a cidade das muralhas, almas companheiras. Lá no ENDA, em Porangaba, de 1 a 4 de maio de 2008, entendi que o meu sofrimento era o de todos, ou pelo menos o de muitos. Era “compartilhável”. Que ter sensibilidade era diferente de sofrer o tempo inteiro. Mas haveria uma saída? O contrato social e político que nos fazem viver em sociedade fundam-se na idéia de um indivíduo racional, senhor de si, que é responsável por seus atos. As diferenças (ou loucura), em seus excessos e desvarios, apontam para o que está além do contrato, para alguma coisa que ficou de fora e que não pode ser domesticada. Eu conseguiria aplacar minha fúria contra a própria espécie? E a metrópole, haveria de tornar o impossível possível? Perdoar o imperdoável? A cidade assim como eu, nem tanto por sermos aquarianas, mas por sermos (feita de) humanas, pagamos um preço por esta ‘difícil ou nula domesticação’. Que saída para a dor interminável? Que voz será dada aos que a cada segundo gritam em silêncio? Quantos ouvem? Quantos ouvirão? São Paulo ainda tem chance, pois em sua miserável rede de fraquezas e indiferença guarda em si um maravilhoso contingente de pessoas compassivas, pessoas que hoje, eu, tanto tempo descrente, consigo enxergar. E a cidade, assim como eu, precisa do outro para continuar a acreditar que há uma saída. E a saída é uma só: a abolição animal. Pois acreditem ou não, foram quatro dias após o dia 25 de janeiro, aquário no ar, nos idos anos de 1905, que o grande abolicionista dos negros, José do Patrocínio sentou-se em frente de uma pequena escrivaninha e começou a redigir: “Fala-se na organização de uma sociedade protetora dos animais. Tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que rudimentar, e que têm conscientemente revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar depois de brutalmente espancado por um carroceiro que atulhava a carroça com carga para uma quadriga, e que queria que o mísero animal a arrancasse do atoleiro…” Não terminou a palavra nem a frase – Um jato de sangue jorrou-lhe da boca. O “Tigre do Abolicionismo” – pobre e desamparado – morria, defendendo em suas últimas palavras, os animais.
Cleila Maria Fochesato Sartor ,Psicóloga, bacharel em Direito e em Serviço Social e pós-graduada em Ética e Filosofia Política