Na alvorada límpida de 04 de outubro, o dia amanhece com uma luz resplandecente: é o dia que marca devoção à São Francisco de Assis. No calendário cristão, ele é venerado como o protetor dos animais, padroeiro daqueles que não possuem voz. Contudo, para além da liturgia, essa data se apresenta como uma convocação: rememorar que todos os seres vivos trazem consigo uma dignidade que exige proteção, respeito e defesa.
São Francisco não é um personagem de uma narrativa heroica. Filho de mercador, em Assis, Itália — jovem entre conforto e devaneios mundanos — sua vivência transformou-se ao voltar-se ao essencial: renunciou às posses, abraçou a pobreza, ouviu o cântico dos pássaros e vislumbrou como irmãos e irmãs, cada ser vivo que respirava.
No Brasil, o exemplo dele advém ecoando em leis, ONGs, mobilizações. Assim como, em normas estaduais, municipais, em voluntariado e, também, na dor de visualizar que em boa parte dos casos, nem sempre a compaixão se traduz em proteção real. As matérias da Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA) documentam esse contraste: entre o ideal — São Francisco — e o vívido — abandono, crueldade, lacunas legais.
Vislumbres na realidade brasileira
Vislumbre um abrigo ínfimo, com poucos voluntários, diversos animais doentes, filas de veterinários, patentes nas portas fechadas, ou sustentada por doações instáveis. Essa não é uma cena imagética de contos, mas cena de uma realidade em cidades brasileiras. De acordo, com a Anda (2022), abrigos que deveriam ser refúgio tornam-se lotações — animais maltratados, subnutridos, esperando por adoção ou por padecer de causas que poderiam ser evitadas.
Conforme Kauna Kempner, em sua matéria da Anda (2021), um fato a ser mencionado é que em Cuiabá, Mato Grosso, por exemplo: durante a pandemia, houve um triplo aumento de denúncias de abandono de animais — estima-se que cerca de 14 mil cães e gatos vivam sem tutor na cidade.
Por outro viés, André Luís, também em sua matéria da Anda (2025) aborda que no Rio Grande do Norte, dentre os anos de 2020 e 2024, os casos de maus-tratos contra animais cresceram 438%. Entretanto, apesar de leis mais rígidas, persistem equívocos negligentes: fiscalização quase inexistente em áreas rurais ou periféricas, ignorância sobre o que configura maus-tratos, impunidade.
Segundo matéria da Anda (2025), entende-se que existe também avanços: em João Pessoa, Paraíba, o aplicativo João Pessoa na Palma da Mão, permite à população denunciar maus-tratos com fotos, localização e descrições — instrumento direto no combate à impunidade. Partindo de uma mesma premissa, no Piauí ocorreu o sancionamento da lei nº 8.598 que tratou de institucionalizar uma política de proteção e controle reprodutivo de cães e gatos. Reprovando o abandono para assegurar a alimentação em espaços públicos ou privados, assim como a esterilização é responsabilidade do poder público e de ações de acolhimento.
Diante dos fatos mencionados, existe um distanciamento entre o São Francisco idealizado que viveu em fraternidade com todos os seres. Em contrapartida, em diversos lares, ruas, algumas legislações agem minimamente ou parcialmente, trazendo silenciamento e omissões perante ao abandono dos animais.
Benevolência que exige atos de políticas públicas
Em controvérsia, se a memória de São Francisco de Assis fosse medida, somente, em missas ou bênçãos solenes por animais, haveria orações de algo quase simbólico. Esse sendo sacrossanto se encontra presente em legislações que afirmam que o abandono é crime e, também nos atos que determinam que correntes não sejam permanentes, em projetos que propõem suspender carteiras de motoristas que abandonam animais em vias públicas.
São Francisco tratou a natureza, de forma benevolente, possuía ideais utópicos, que na sociedade contemporânea ainda são idealizados, mas encontram distanciamento da própria realidade. Existem excelentes legislações, porém políticas públicas que não são efetivas na prática, em que diversos animais domésticos sofrem abandono, e uma quantidade enorme de animais silvestres que passam pelo comércio ilegal.
Conforme Serra (2003), “o tráfico de animais é caracterizado pela captura de animais silvestres do seu habitat natural e sua destinação ao comércio ilegal. Quando esses animais não morrem nas mãos dos traficantes, devido a maus-tratos, fome, sede e péssimas condições de transporte, eles são destinados a colecionadores, laboratórios que realizam testes com medicamentos ou cosméticos, comerciantes ilegais de peles, couros e outras partes de animais. Também alimenta o tráfico de animais silvestres o desejo humano de estar em contato com animais diferentes dos domésticos; por isso, muitas vezes, essas pessoas compram esses animais sem saber do mal que estão causando a eles e ao meio ambiente.” (SÃO PAULO, 2013.)
O ideal utópico de São Francisco de Assis é sublime, porém, a realidade social possui outra vertente. É necessário que haja políticas públicas efetivas e recursos financeiros para uma fiscalização adequada, inclusive nas periferias, zonas rurais, e comunidades tradicionais. Um conhecimento e ensino ético, adequado desde do início — para não naturalizar a crueldade diante de qualquer espécie animal.
Além de que, tanto o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário se responsabilizem, metaforicamente, com um equilíbrio harmônico ao proteger todas as espécies de animais, não somente animais domésticos, mas também silvestres, de produção, de tração — todos aqueles que sofrem. A sociedade precisa também estar engajada nesse processo de defesa aos animais, realizando denúncias, ao apoiar ONGs de proteção aos animais e realizar adoções dentro dos recursos possíveis.
Uma melodia poética
Em algum lugar do mundo, existe alguém alimentando animais de rua indefesos. Alguns desconhecidos adotando animais de abrigos com respeito. Um centro de proteção animal, com portões abertos, acolhendo sem distinção de raça ou espécie. Esses gestos singelos, se tornam invisíveis para quem só visualiza o frenesi urbano. Em cada gesto — colocar água, amparar algum animal machucado, pagar uma vacina, acolher com um olhar humanístico — traz o reflexo espelhado do itinerário de São Francisco. Na contemporaneidade, ainda permanece a memória de seus generosos atos, passou entre animais e árvores, pregou a simplicidade, se despindo de ornamentos do mundo para abraçar a causa dos animais — então rememorar sua data é isso: não uma fotografia estática, mas um chamado contínuo.