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FILIPINAS

Santuário de tartarugas-marinhas pode acabar devido às mudanças climáticas

14 de novembro de 2022
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Foto: Freepik

Antigamente as grandes tartarugas-marinhas verdes tinham muito medo de humanos, dos quais fugiam o mais rápido que conseguiam.

“Quando as tartarugas viam pessoas, era como se tivessem visto um fantasma”, comentou Mario Pascobello, morador da Ilha Apo, nas Filipinas. “Antigamente a gente as matava”, ele explicou. Os pescadores da ilha consumiam a carne e os ovos das tartarugas.

Hoje as tartarugas-marinhas verdes, uma espécie principalmente herbívora e que corre risco de extinção, vivem tranquilamente nas águas rasas do litoral da ilha, sem ser incomodadas pelos pescadores, que compartilham as águas com elas.

Mas se os pescadores não constituem mais uma ameaça às tartarugas, estas enfrentam outro perigo criado pelo homem: a mudança climática.

“O aumento da temperatura das áreas costeiras, provocada pela mudança climática, vai matar corais e larvas de peixes”, disse o biólogo marinho Angel Alcala, que começou a visitar a ilha na década de 1970. “Antes chegavam tufões à área de Negros apenas a cada dez ou 15 anos, mas hoje Apo é atingida por um tufão a cada quatro ou cinco anos.”

A comunidade ainda está se recuperando do último tufão, e nos últimos anos teve que restaurar parte de seu recife que foi danificada em eventos de branqueamento, em que a água marinha superaquecida leva o coral a expelir os organismos de tipo vegetal que vivem dentro dele, levando os corais a ficar brancos e colocando-os em risco maior de morrer.

Ilhota vulcânica pequena situada mais ou menos no centro do arquipélago das Filipinas, Apo abriga um santuário marinho intocado numa área conhecida como a Amazônia do Mar devido à sua grande biodiversidade. Acredita-se que as águas em volta da ilhota abriguem 400 espécies de corais.

A harmonia reinante hoje entre as tartarugas e os humanos não foi alcançada facilmente.

A comunidade da ilha é composta principalmente de pescadores. Num primeiro momento, eles se opuseram fortemente à criação do santuário, temendo que os esforços de conservação impusessem restrições que levariam uma área já carente a mergulhar ainda mais fundo na pobreza.

“Me lembro de pensar que nossa ilha poderia ser tirada de nós”, contou o pescador idoso Leonardo Tabanera. “E se não pudéssemos mais pescar?”

Mas o santuário marinho criado em 1982 acabou sendo saudado como um exemplo bem-sucedido de como negociações e concessões mútuas são capazes de equilibrar as necessidades de uma população local –que depende da extração de recursos naturais para sua sobrevivência— com metas de conservação globais.

“O que é mais importante: o santuário ou as pessoas que precisam se alimentar?”, disse Pascobello, um dos líderes da comunidade. “É preciso muita discussão, muito diálogo.”

Instado por sua mãe, contou Pascobello, ele acabou se abrindo à ideia do santuário, mas apenas se a comunidade e os conservacionistas pudessem chegar ao que ele descreveu como “uma situação que beneficia a todos”.

Após anos de discussões, chegou-se a uma solução: os pescadores concordaram em criar uma zona de pesca proibida –mas apenas numa área onde eles raramente pescavam de qualquer maneira.

“Desconfio que os pescasores tenham aceito que protegêssemos a parte do recife que não era realmente muito produtiva, do ponto de vista deles”, comentuou Alcala.

O conhecimento local que os pescadores tinham dos recifes, que os permitiu identificar uma área da qual podiam abrir mão, acabou sendo crucial para ajudar a proteger as águas, disse Pascobello. A área na qual a pesca foi proibida acabou funcionando como criadouro altamente produtivo dos peixes da região.

“Se eu perguntar a um cientista onde a garoupa põe seus ovos, ninguém poderá me responder”, disse Pascobello. “Mas se eu perguntar aos pescadores, eles sabem.”

Ao concordar em deixar totalmente intocada a parte do recife que desempenha um papel crucial na reprodução dos peixes, Apo conseguiu a solução que procurava e que beneficia a todos.

“Em dez anos a biomassa de peixes se multiplicou por três”, contou Alcala. O resultado foi benéfico para o ambiente e para os pescadores.

Desde então, a comunidade de Apo, que tem menos de mil habitantes, já ajudou várias comunidades nas Filipinas e até mesmo na Indonésia a criar seus próprios santuários, sempre ressaltando a importância de levar em conta não apenas os conhecimentos dos cientistas, mas também o know-how local.

O aumento na biomassa de peixes não foi o único benefício econômico do santuário: ele também vem atraindo turistas. Apo agora é visitada por praticantes de mergulho e snorkel.

A pesca ainda é um elemento central da identidade da ilha.

As crianças de Apo costumam ir à praia ao pôr do sol. Elas se reúnem em volta de piscinas naturais, examinando os espécimes na água cristalina, pegando conchas e pedras para vender, crustáceos para brincar e isca de peixe para seus pais. Usando óculos de natação caseiro, mergulham para desembaraçar as redes de pesca. Algumas delas saem sozinhas em barcos pequenos.

Os esforços de conservação de Apo são mantidos há 40 anos, com pouca ajuda financeira externa. Mas agora estão ameaçadas pelo ritmo acelerado da mudança climática, que afeta de modo desproporcional as populações mais pobres –e muitas vezes atinge com mais força as comunidades que menos contribuem para as emissões de carbono. É o caso dos habitantes de Apo, que passam boa parte do dia sem usar eletricidade.

Os pescadores de Apo, como Tabanera, sabem que a mudança climática traz um risco existencial para eles, mas no dia a dia enfocam a luta imediata pela sobrevivência.

“Somos pobres, não temos muito do que nos orgulhar”, disse Tabanera.

Mesmo assim, ele vê a presença das tartarugas na ilha como um algo positivo, um sinal de que as águas de Apo estão suficientemente sadias, pelo menos por enquanto, para que os pescadores possam colocar alimento na mesa. E ele espera que os turistas que vêm ver as tartarugas ajudem a divulgar o que é feito na ilha e o futuro sombrio que ela enfrenta em função da mudança climática.

“Por pouco que a gente ganhe com o mar, nosso sonho é continuarmos a ganhar a vida com isso”, ele disse.

Em sua casa, Tabanera tem um “altar” de anzóis da sorte, todas enferrujadas pela água salgada e o ar úmido. Elas o lembram de algumas das vezes em que ele teve os melhores resultados com a pesca.

“Algum dia, quem sabe, todo o mundo poderá melhorar de condição”, diz.

Fonte: Folha de SP

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