Em novembro deste ano, um flagrante incomum surpreendeu três arqueólogos que estavam observando aves no bairro Santa Olímpia, em Piracicaba (SP). O grupo registrou um comportamento que desafia explicações científicas: um sanhaço-cinzento e um suiriri dividindo os cuidados com filhotes em um mesmo ninho.
Astolfo Gomes e seus colegas estadunidenses Bruce Bradley e Greg Nunn, além de serem apaixonados por arqueologia, compartilham o interesse pelas aves.
“Estávamos observando um sanhaço quando notamos que ele foi para um ninho, alimentou os filhotes e voou. De repente, um suiriri entrou no mesmo ninho. Achávamos que ele iria predar os filhotes, mas, para nossa surpresa, ele se acomodou no ninho, ficou por um tempo e voou. Depois, o sanhaço retornou, e isso se repetiu várias vezes”, relata Astolfo, docente do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP).
O episódio foi filmado por Greg e compartilhado com especialistas para tentar entender o que estavam presenciando. De acordo com Luciano Lima, biólogo do Terra da Gente, o comportamento observado é chamado de cuidado parental entre espécies diferentes, conhecido também como “alimentação interespecífica”.
Embora o fenômeno já tenha sido documentado em 186 casos ao redor do mundo, envolvendo 107 espécies, a maioria dos registros é concentrada em aves europeias e norte-americanas.
“Esse comportamento nunca havia sido registrado entre o sanhaço-cinzento e o suiriri. Trata-se de algo inédito para a ornitologia dessas duas espécies”, destaca.
No vídeo capturado por Greg, não é possível identificar de qual espécie era o filhote, nem visualizar a estrutura do ninho. No entanto, Luciano explica que o comportamento pode ser causado por fatores como erro de reconhecimento.
“Filhotes emitem vocalizações intensas, que podem confundir aves adultas e ativar o instinto parental de outra espécie. Também é possível que uma das aves tenha perdido seus próprios filhotes ou ninho e redirecionado seu comportamento parental para o mais próximo disponível”, diz.
A proximidade entre os ninhos das espécies também pode ser uma das causas mais comuns de alimentação interespecífica.
“Essa proximidade pode levar a interações frequentes, o que aumenta a chance de cuidado parental ser erroneamente direcionado”, afirma.
Impactos para as aves e o filhote
Esse comportamento, por mais fascinante, pode gerar desafios tanto para os adultos quanto para o filhote.
“Ao cuidar de filhotes de outra espécie, a ave cuidadora pode comprometer seu próprio ciclo reprodutivo, gastando energia e recursos que deveriam ser destinados aos seus descendentes. Já para o filhote, o impacto dependerá do tipo de alimento oferecido. Se houver incompatibilidades nutricionais, isso pode afetar negativamente seu desenvolvimento”, explica Luciano.
Um flagrante raro no interior de SP
O ambiente urbano onde o fenômeno ocorreu pode ter facilitado a interação, já que ambas as espécies são bem adaptadas a esses espaços. Contudo, segundo Luciano, não há evidências de que o comportamento tenha sido influenciado por características específicas da região de Piracicaba.
Infelizmente, o desfecho dessa história é incerto, pois o proprietário do terreno onde o ninho foi feito disse que ele havia sido abandonado.
Apesar disso, o registro feito pelo grupo de arqueólogos abre novas possibilidades de estudo sobre interações interespecíficas em aves sul-americanas. “Casos como esse nos mostram como ainda há muito a ser descoberto sobre o comportamento animal e as complexas relações que se desenrolam na natureza”, conclui Luciano.
Fonte: g1