A ativista climática ugandense Vanessa Nakate, 25, cristã praticante, filha de um empresário e líder político de Kampala, organizou sua primeira greve por justiça climática em janeiro de 2019, inspirada em Greta Thunberg.
Pouco mais de um ano depois, em fevereiro de 2020, estava, ao lado de outras ativistas, no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, para pedir que governos, empresas e bancos parassem de subsidiar combustíveis fósseis. Uma foto do evento da agência de notícias AP (Associated Press), no entanto, cortou Nakate, provocando indignação global e uma retratação pública da empresa.
“Você não apagou apenas uma foto, você apagou um continente”, afirmou ela, à época.
Desde então, Nakate tem participado de vários eventos climáticos globais, como o Global Landscapes Forum e o Youth4Climate, e recebido enorme atenção da imprensa internacional. A ativista também foi um dos destaques da COP26 (26ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas), no último ano. “A humanidade não será salva por promessas” foi uma das frases mais usadas por ela nas marchas em Glasgow.
Nakate, que integra o Fridays for Future Uganda —movimento de jovens que, entre outras atividades, faltam às aulas nas sextas-feiras para para exigir em manifestações ações contra a crise climática —, é fundadora do Rise Up Movement, voltado a amplificar as vozes dos ativistas na África, e do Vash Green Schools Project, que promove transição energética em escolas em Uganda.
Nesta entrevista à Folha, ela fala sobre a pouca atenção dada aos impactos da crise climática na África e sobre a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos pelas emissões de gases de efeito estufa —essas nações, segundo ela, devem estabelecer e financiar um fundo específico para perdas e danos.
Vanessa Nakate discursa ao final da marcha do movimento Fridays for Future, em Glasgow, no período da COP26 – Yves Herman – 5.nov.2021/Reuters.
Segundo o último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudança do Clima da ONU), de 2,6 milhões a 3,4 milhões de novos deslocamentos relacionados à crise climática ocorreram na África Subsaariana em 2018 e 2019 e, com um aquecimento global de 2,5°C até 2050, de 56 milhões a 86 milhões de pessoas terão de migrar de seus países.
No fim deste mês, Nakate retornou ao Fórum Econômico Mundial. Desta vez, participou de painéis sobre como transformar palavras em ação e sobre fatores decisivos para que governos e empresas direcionem metas para a COP27, conferência que ocorrerá em novembro no Egito.
Há dois anos, sua imagem foi cortada de uma foto no Fórum Econômico Mundial. O que houve desde então em termos das vozes africanas serem respeitadas e amplificadas como parte do debate climático global? Temos trabalhado muito para exigir mais representação plena das vozes africanas no movimento climático, nos espaços climáticos, nas conversas sobre o clima.
Acreditamos que todo ativista tem uma história para contar, e toda história tem uma solução para dar —e toda solução tem uma vida para mudar.
Também sabemos que todo o continente africano é responsável historicamente por menos de 4% das emissões globais. Portanto, é importante ter ativistas, pessoas e comunidades que estão na linha de frente da crise climática nas primeiras páginas dos jornais e, por isso, estamos trabalhando para garantir que todos os ativistas estejam representados.
Os países africanos vêm sendo seriamente afetados pelas mudanças climáticas. Qual é atualmente o principal foco do debate sobre mudanças climáticas no continente e em seu país? Muitas comunidades no continente estão enfrentando alguns dos piores impactos da crise climática e lidando com as consequências de diferentes desastres climáticos, desde inundações até ciclones.
Por exemplo, o ciclone Idai [de março de 2019] destruiu grande parte do continente africano e deixou muitas pessoas desalojadas, muitas pessoas mortas e muitas propriedades destruídas.
Uma menina coberta por plástico preto olha em direção à câmera, enquanto ao seu lado uma criança menor dorme.
Vimos a seca na África Oriental, que deixou mais de 26 milhões de pessoas à procura de comida, muitos animais famintos, levados à morte, e tantas comunidades sofrendo com perdas e danos.
À medida que a crise climática aumenta, há certas coisas às quais não podemos nos adaptar. As comunidades não podem se adaptar à fome. As comunidades não podem se adaptar à perda de suas identidades, à perda de suas culturas, à perda de suas histórias por causa do aumento dos desastres climáticos.
Seca empurra quenianos para fome e leva animais à morte
Portanto, algumas das principais questões a serem abordadas à medida que avançamos para a COP27 é o fato de que perdas e danos estão aqui conosco e é necessário que os países desenvolvidos forneçam financiamento climático para adaptação e mitigação. Ainda estamos esperando os US$ 100 bilhões/ano que foram prometidos pelos países desenvolvidos para os países vulneráveis.
Quais são suas prioridades neste ano em termos de perdas e danos? Sabemos quem causou e quem precisa pagar pela crise climática. Conhecemos a história das emissões globais, que foram causadas por países desenvolvidos, por países do Norte Global. É responsabilidade desses países pagar pelas perdas e danos do Sul Global.
As pessoas perdem coisas que não podem recuperar. Vou usar o exemplo mais fácil: imagine que você cresceu numa casa e sabe que esta é a sua casa, a sua aldeia, a sua comunidade. Mas, quando sua vila está submersa por causa de inundações extremas, isso não é algo que você possa ter de volta, você vai ter que se mudar. E você perderá não só a sua casa, mas as histórias e as memórias daquele lugar.
Homem está ao lado de muitos pedaços de plástico no que parece ser uma praia ou o leito de um rio. Ao fundo, a água está revolta, formando ondas de cor marrom Homem está ao lado de muitos pedaços de plástico no que parece ser uma praia ou o leito de um rio. Ao fundo, a água está revolta, formando ondas de cor marrom.
Homem em meio a destroços durante inundação em Durban, na África do Sul, em abril de 2022 – Rajesh Jantilal – 12.abr.2022/AFP.
Por isso, à medida que avançamos para a COP27, uma das coisas a que vou me dedicar será exigir que o financiamento climático conte com um fundo separado para perdas e danos. Fundo, não empréstimo, e um fundo adicional ao que vem sendo discutido para adaptação e mitigação [de US$ 100 bilhões/ano].
Quão representativa é Uganda no debate climático africano? Temos vários ativistas que estão trabalhando e ajudando a organizar e mobilizar o movimento climático.
Mas isso não é algo que possamos fazer sozinhos. Os governos africanos têm um papel fundamental a desempenhar no sentido de garantir que no futuro a nossa geração tenha um planeta seguro.
Não tive nenhum engajamento específico com o meu governo, mas sei as diversas coisas que estão sendo feitas no país em termos de restauração de áreas úmidas e da cobertura florestal, mas também não posso esquecer de um oleoduto que vai ser construído de Uganda à Tanzânia [projeto da Total, da França, e da China National Offshore Oil Corporation, da China, orçado em US$ 3,5 bilhões, para transportar petróleo bruto de Uganda para um porto na Tanzânia por meio de um oleoduto de 1.443 km].
Esses são os desafios que vemos quando se trata de nossos governos. Para muitas pessoas, esse é um projeto que trará dinheiro, ou lucro, ou desenvolvimento econômico, mas quando analisamos os impactos socioambientais, vemos o quanto os ecossistemas vão ser destruídos.
A sua vida mudou muito desde que você se tornou ativista climática. Você poderia nos contar um pouco sobre sua rotina e sobre o trabalho com o Rise Up Movement? Como parte do Rise Up Movement, fazemos várias coisas, como ajudar a organizar e mobilizar as greves climáticas. Também temos projetos comunitários como o Vash Green Schools Project.
Com ele instalamos painéis solares e fogões ecológicos em escolas para impulsionar a transição para energia renovável e reduzir a lenha que as escolas usam na preparação de alimentos. Também trabalhamos em projetos de distribuição de lâmpadas solares para indivíduos e famílias.
Como você tem incluído a desigualdade de gênero como parte do seu ativismo? Em nossas comunidades, especialmente nas áreas rurais, mulheres e meninas têm a responsabilidade de conseguir recursos para suas famílias. Quando as fontes de água secam, as mulheres têm que caminhar longas distâncias para buscar água, por exemplo.
Quando os desastres climáticos ocorrem, muitas vezes são as mulheres que estão na linha de frente. Quando as propriedades rurais são destruídas, é um trabalho árduo de tantas mulheres que é reduzido a nada.
E temos lido e ouvido falar bastante sobre as “noivas climáticas”, as meninas que têm que abandonar a escola e são forçadas a casamentos precoces porque seus pais perderam tudo por causa desses desastres climáticos.
É por isso que as pessoas precisam saber que a crise climática exacerbou as desigualdades de gênero. E é muito importante para nós que, enquanto exigimos justiça climática, também exijamos igualdade de gênero, porque não haverá justiça climática sem igualdade de gênero.
Na sua visão, que deve acontecer até a próxima COP? Uma das minhas prioridades é interromper novos projetos de combustíveis fósseis, pois estão exacerbando os desastres climáticos. Porque não podemos comer carvão, não podemos beber petróleo e não podemos respirar o chamado gás natural.
Uma outra prioridade é o projeto de educar meninas e empoderar mulheres. O projeto Drawdown lista cem coisas que podemos fazer para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e classificou em quinto lugar a educação das meninas e o planejamento familiar.
Porque, quando as meninas são educadas, isso não beneficia apenas o indivíduo, mas a comunidade e o mundo em geral.
Você disse uma vez que questões como o desmatamento da Amazônia recebem mais atenção porque são priorizadas pelo Norte Global, enquanto outras, igualmente importantes, como a destruição da Bacia do Congo, não. Quais temas deveriam receber mais atenção da imprensa? Acho que todas as questões das comunidades e dos países que estão na linha de frente da crise climática precisam receber mais cobertura da imprensa. Não apenas a floresta amazônica, não apenas a floresta tropical do Congo. Embora o continente africano esteja na linha de frente da crise climática, não está nas primeiras páginas dos jornais mundiais.
Tronco de árvore caído no chão com uma parte em chamas e o resto com aparência de carvãoTronco de árvore caído no chão com uma parte em chamas e o resto com aparência de carvão.
Árvore queima em incêndio na Floresta Nacional Bom Futuro, em Rondônia, em 2020 – Lalo de Almeida – 21.ago.2020/Folhapress.
Você já teve a oportunidade de interagir com ativistas do Fridays For Future no Brasil? Tem planos de visitar o país? Eu adoraria. Tenho amigos do Fridays For Future Brasil com quem trabalhei. Seria ótimo ir ao Brasil.
A série Planeta em Transe é apoiada pela Open Society Foundations.
RAIO-X
Nakate, 25
Formada em administração e marketing pela Makerere University Business School, a ativista climática ugandense é autora do livro “A Bigger Picture: My Fight To Bring A New African Voice To The Climate Crisis” (“Um Cenário Maior: Minha Luta por Vozes Africanas no Combate à Crise Climática”, ainda não publicado no Brasil) e cofundadora do Fridays For Future Uganda. Foi eleita uma das cem mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo pela BBC em 2020 e estampou a capa da revista Time em outubro de 2021.
ENTENDA A SÉRIE
Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanha ainda as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU em novembro, no Egito). O projeto tem financiamento da Open Society Foundations.
Fonte: Folha UOL