Um documento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de março deste ano, aponta ilegalidades na importação das 18 girafas pelo BioParque do Rio, que culminou na morte de três delas.
De acordo com a nota técnica emitida pelo órgão, das 15 girafas importadas pelo parque no ano passado e que ainda estão vivas, seis foram avaliadas até a publicação do documento. Destas, quatro são de espécies não listadas na licença emitida, tendo a importação “irregular e ilegal”.
Isso foi verificado após denúncias de maus-tratos sofridos pelos animais no resort Portobello Safari, em Mangaratiba, no litoral sul do Rio, para onde foram levados para o cumprimento de uma quarentena de 15 dias. No entanto, seis meses depois da chegada dos animais ao Brasil, eles seguem no mesmo local, confinados em espaços reduzidos e sob “torturas psicológicas”, como apontam órgãos defensores.
Os analistas ambientais que assinam o documento constataram também má-fé processual do Grupo Cataratas por afirmar, inicialmente, que teria capacidade de receber as 18 girafas.
A partir da repercussão do caso da morte de três dos animais importados pelo zoológico, em dezembro de 2021, foi instaurada uma investigação interna para apurar o processo que liberou a vinda das girafas para o país, as mortes, os maus-tratos e a introdução ilegal das mesmas.
A justificativa utilizada pelo parque para a importação das girafas era um projeto de conservação. No entanto, tal argumento se mostrou fraco na análise de Nadja Romera e Roberto Cabral, que assinam o documento do Ibama.
Os analistas apontam que, apesar de o zoológico ter afirmado que a importação dos animais não teria fins lucrativos, seu registro no Cadastro Técnico Federal do Ibama aponta “atividade de criação e exploração econômica de fauna exótica”. “Entendemos que deva prevalecer o registro em sistema oficial, sobretudo frente ao insuficiente projeto de conservação apresentado”, afirmam.
Também é apresentado que o Ibama ficou sabendo do cumprimento de quarentena no Portobello Safari apenas um mês antes da importação das girafas – e o processo não foi interrompido. Além disso, não se realizou uma fiscalização do resort de Mangaratiba antes da chegada dos animais, em 11 de novembro de 2021.
“A terceirização da responsabilidade afirmando que o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) já havia avaliado o local não afasta a responsabilidade do Ibama, que detém a atribuição de permitir o ingresso dos espécimes no Brasil”, explicam.
Com as girafas já no Rio, em 26 de janeiro deste ano, uma fiscalização no BioParque do Rio comprovou que o ambiente, apesar da entidade ter afirmado inicialmente sua capacidade, não possui estrutura para receber nenhuma girafa.
“O recinto traz elevado risco de fuga ou acidente para o animal, e não existe abrigo, nem maternidade. A falta de uma séria análise técnica, inclusive quando se altera a destinação inicial dos animais do Zoológico do Rio de Janeiro para o de Portobello, mantém o tratamento equivocado despendido ao caso”, aponta.
Segundo o documento, no dia 11 de novembro, quando as 18 girafas chegaram ao Aeroporto Galeão, agentes do Ibama que estavam no Rio para uma outra ação puderam verificar o desembarque dos animais na cidade.
As girafas, no entanto, chegaram em um jumbo fretado e estavam separadas em grupos de três dentro de seis caixas. Conforme aponta a nota do órgão, “não havia condições ou local para abertura das caixas no aeroporto, nem acesso pleno aos animais”.
Esse fator teria impossibilitado que fossem verificados os microchips individuais dos bichos. Assim, apenas a documentação Cites [licença] apresentada por representantes do BioParque do Rio foi verificada, além da realização da checagem para ver se os animais nas caixas eram mesmo girafas e estavam vivos.
Os analistas também reforçam que responsáveis pela empresa acompanharam a chegada dos animais e informaram que eles passariam por uma quarentena no Portobello Safari, mas que “pareceu [aos agentes] ser área do próprio zoológico, ou mesmo uma área previamente autorizada”.
No local, os agentes do Ibama relataram que chamou a atenção o fato das girafas serem de vida livre ou selvagens, o que contraria a portaria nº 93/98 do órgão, mas que “qualquer atitude sem devida análise do processo seria precipitada e leviana”.
Ainda de acordo com a investigação dos analistas ambientais, o material aponta também que não ocorreu o devido acompanhamento das 18 girafas até o Portobello Safari, já que os agentes do Ibama retornaram a Brasília no dia seguinte.
Falhas nos laudos das mortes
Segundo a análise, três animais que estavam no resort Portobello Safari, em Mangaratiba, no litoral sul do Rio, morreram no dia 14 de dezembro de 2021, mas o fato foi informado ao Ibama apenas no dia 20 do mesmo mês.
Por conta disso, os órgãos ambientais foram impossibilitados de acompanhar a necrópsia dos bichos. A situação foi comparada à ocultação de cena de crimes que envolvem seres humanos, já que o laudo apresentado pelo BioParque contém falhas e “total ausência de documentação fotográfica”.
“Entende-se incompatível, ainda, a informação prestada de que a morte das girafas teria sido por miopatia, que implica em elevado grau de estresse, e posteriormente informar que a recaptura das girafas foi tranquila. Se a recaptura foi tranquila, não haveria justificativa de morte por miopatia e, se houve morte por miopatia, denota-se que a recaptura não foi tranquila”, diz um trecho.
Além disso, ao serem exumadas, não foram encontrados microchips nas girafas que morreram. Então, até aquele momento, não se sabia se as três constavam corretamente na licença emitida pelo Ibama.
BioParque
Fonte: Metrópoles
Habeas corpus
A Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA), o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal (FNPDA) e o gabinete do deputado federal David Miranda (PDT) ingressaram com um pedido de habeas corpus para a libertação das 15 girafas que estão confinadas, desde de novembro de 2021, no Hotel Resort Portobello, em Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Os animais, originalmente 18, foram importados da África e seriam destinados ao Bioparque, no Rio de Janeiro, ao Hotel Portobello Safári, em Mangaraba (SC) e ao zoo de Pomerode, também em Santa Catarina. Presas na Costa Verde do RJ há mais de sete meses, três girafas morrem no dia 14 de dezembro após tentarem fugir em busca de liberdade. Durante uma operação desastrada de recaptura e reaprisionamento, os animais selvagens não sobreviveram ao estresse.
A medida judicial, que tem como fim lutar contra o aprisionamento injusto, esmiuça a origem, translado e possíveis interesses envolvidos na importação dos animais para o Brasil. “Tirar a liberdade de um ser que tem por razão de vida a liberdade de ir e vir é um ato de extrema maldade. Essas girafas estão sendo tolhidas no seu direito de existência, afinal, elas, como seres selvagens, possuem uma função
ecológica. É preciso dizer que todo ser inteligente impedido de cumprir sua missão de vida, aprisionado em ambiente alienígena, sem contato com seus pares e longe de casa, tem seu espírito anulado. Isso significa viver em constante e injusto tormento mental. É de uma crueldade inadmissível”, diz parte do documento.
O habeas corpus cita ainda um trecho do livro “Crueldade consentida: crítica à razão antropocêntrica”, do promotor de justiça Fernando Laerte Levai: “Há séculos que o homem, seja em função de seus interesses financeiros, comerciais, lúdicos ou gastronômicos, seja por egoísmo ou sadismo, compraz-se em perseguir, prender, torturar e matar as outras espécies. O testemunho da história mostra que a
nossa relação com os animais tem sido marcada pela ganância, pelo fanatismo, pela superstição, pela ignorância e, pior ainda, pela total indiferença perante o destino das criaturas subjugadas. Para que se possa mudar esse triste estado de coisas, há que se incluir os animais na esfera das preocupações morais humanas, porque eles, ao contrário do que se pensa, também são sujeitos de direito”.
Direito à vida e à liberdade
A advogada e diretora jurídica da ANDA, Letícia Filpi, explica que não há nenhuma diferença entre um habeas corpus para seres humanos e animais. “O direito de ir e vir é o mesmo. O direito inato de liberdade de locomoçção é igual. Eles [os animais] são seres sencientes, assim como os humanos. Eles têm direitos inatos, assim os humanos. Não tem diferença nenhuma. O único obstáculo é que o ordenamento jurídico é especista, é antropocêntrico. Então, muitas vezes, o jurista mais conservador analisa como se fosse algo inusitado, mas não é, está aberto já. O habeas corpus é um instrumento, um remédio constitucional, para defender o direito de locomoção de todos os sujeitos de direito, não importa se é um indivíduo humano ou não humano”, explicou.
Ela esclarece ainda o objetivo da ação. “O que a gente pede no habeas corpus é que, no mínimo, as girafas vão para um santuário. O que o Ibama fez foi tão grave, de simplesmente dar uma licença de importação de 18 girafas para uma organização comercial aqui no Brasil, sem nenhuma prova que existe um projeto de conservação e que projeto de conservação seria esse que justificaria tirar 18 indivíduos livres para aprisionamento. O Ibama não fez nenhum estudo prévio do projeto de conservação ou confirmou se realmente existe esse projeto. Até agora, o Bioparque não provou absolutamente nada. É óbvio que a finalidade da importação é para comércio”, alertou.
E completa: “O Ibama não ter feito esse estudo e conceder uma licença sem justificativa foi muito irresponsável. O que a gente pede é que as girafas voltem para o ambiente natural de onde elas nunca deveriam ter saído, mas essa logística é muito cara, muito complicada, ela é muito onerosa, não só em termos financeiros, mas também em termos físicos e emocionais para as girafas fazer toda a viagem de volta. A gente pede para elas voltarem para a África, o local de origem, mas se não for possível, que elas vão para um santuário para ficar em um sistema de semiliberdade. O único desfecho justo possível para essas girafas é elas voltarem para casa, se não, ao menos viverem em local onde tenham o espaço e a liberdade de galoparem”, afirmou.
A advogada elucida também que os envolvidos podem ser punidos administrativa e penalmente em razão da importação de animais selvagens para fins comerciais, ação proibida por uma portaria do Ibama, e pelo dano à fauna. Ainda está em fase de inquérito, de investigação, há veterinários e equipes da Polícia Federal analisando, mas há indícios forte de que as girafas que estão em Mangaratiba são vítimas de maus-tratos e, apresentam, inclusive, possíveis hematomas e escoriações. Ela acredita que o único interesse que está prevalecendo no momento é o econômico e que zoológicos, ao contrário do que dita a falácia conservacionista, são empresas que têm como finalidade obter lucro financeiro a partir da exploração de animais.
O reconhecimento dos animais enquanto sujeitos de direito encontra prerrogativas, tanto no Brasil quanto no exterior. Em 2011, uma decisão histórica concedeu um habeas corpus à chimpanzé Suíça, que vivia aprisionada e era explorada pelo zoológico de Salvador. Símbolo de um caso inédito e emblemático no país, Suíça, que na época tinha 10 anos, morreu um dia antes da publicação da sentença que a libertaria. A chimpanzé Cecília ganhou uma nova vida após um habeas corpus garantir a transferência dela do zoológico de Mendoza, na Argentina, para o Santuário dos Grandes Primatas de Sorocaba, no interior de São Paulo, em 2017. Agora, nos EUA, ativistas lutam para que a Justiça também reconheça o habeas corpus impetrado a favor da elefanta Happy, que vive há 45 anos nos zoo do Bronx.
Fonte: ANDA