São raros os dias em que os jangadeiros do povoado de Lages, em Alagoas, voltam para casa sem comentar que avistaram um peixe-boi nadando livre nas águas tranquilas do rio Tatuamunha. Até mesmo um ou outro filhote brincalhão, acompanhado da mãe, já foi observado no estuário seguindo em direção ao mar. Há três décadas, porém, cenas como essas eram inimagináveis. Naquela época, os cientistas consideravam o peixe-boi marinho (Trichechus manatus manatus) extinto da fauna brasileira. E a maior parte dos moradores daquela faixa do litoral alagoano nem sequer tinha ouvido falar desse rechonchudo mamífero aquático, capaz de chegar a vistosos 4 metros de comprimento e 600 quilos de peso.
As águas que correm limpinhas pelo Tatuamunha estão protegidas hoje por leis federais. O rio integra a Área de Proteção Ambiental da Costa dos Corais, a maior unidade de conservação marinha do país – seus 135 quilômetros de extensão (entre as cidades de Tamandaré, em Pernambuco, e Paripueira, em Alagoas) abrigam manguezais e recifes naturais de ponta a ponta, favorecendo a oferta generosa de nutrientes à fauna marinha. A região foi palco de uma experiência inédita em 2010: a reintrodução na natureza de três filhotes de peixe-boi, com pouco mais de 2 anos de vida.
“É a primeira vez que espécimes de cativeiro seguem para o seu ambiente natural”, conta a bióloga Fábia Luna, que participou do trabalho. “Eles permanecerão em um cercado no Tatuamunha, e só serão soltos caso se adaptem à vida selvagem.” Nascidos no oceanário da sede do projeto que há 30 anos começou a recuperar a espécie no Brasil, na ilha pernambucana de Itamaracá, os filhotes representam uma esperança para a conservação. Os cientistas sabem que cada peixe-boi mantido vivo é um passo importante para a continuidade da espécie que, no passado, foi abundante no litoral brasileiro. Agora, há apenas cerca de 500 deles, limitados a faixas descontínuas nos litorais do Nordeste e do Norte, de Alagoas ao Amapá.
Reintroduzir um animal na natureza, especialmente quando ele corre perigo de extinção, é uma atividade de risco. Há 11 anos acompanhei uma das operações que se tornaria a mais dramática na história do projeto. Aparecida, uma fêmea achada à beira da morte na Paraíba, e que tivera a saúde recuperada em Itamaracá, seria devolvida à natureza na praia de Lages.
O trajeto de 200 quilômetros, da sede ao local da soltura, foi tenso. A bordo da carroceria de um caminhão e acomodada em uma piscina forrada de colchões umedecidos, Aparecida teve a frequência cardíaca e a temperatura medidas a cada minuto pelos tratadores. Seu corpanzil de 2,5 metros recebia camadas de óleo vegetal e borrifos d’água. Todo o monitoramento acontecia sob a fraca luz de lanternas, já que a viagem começara às 3 horas da madrugada para se evitar o sol inclemente do Nordeste. Desde o dia anterior, porém, a fêmea estava sob intenso estresse.
Fora pesada e medida, tivera o sangue coletado e recebera marcas de identificação na cauda, além do radiotransmissor. Só no finalzinho da tarde, ela foi solta – havia mais de 36 horas que os pesquisadores e eu não pregávamos os olhos. Quatro dias depois, recebi um telefonema que golpeava o sucesso daqueles esforços. Aparecida teria mordido uma bomba não detonada no fundo do mar, tornando-se assim mais uma vítima da proibida e cruel pesca com explosivos.
A notícia de que peixes-boi ainda resistiam na costa do país veio à tona em 1980, quando os oceanógrafos José Catuetê (falecido em 1987) e Guy Marcovaldi faziam um estudo de campo sobre a situação das espécies marinhas no país. Foi uma descoberta alarmante. Tanto que, no mesmo ano, nasceria o Projeto Peixe-Boi Marinho – hoje um dos mais bem-sucedidos programas de conservação da vida selvagem no Brasil.
A seguir, no início dos anos 1990, o oceanógrafo Régis Pinto de Lima, ex-chefe do projeto, viajou desde o norte da Bahia até o rio Oiapoque, no Amapá, em uma unidade móvel apelidada de Igarakuê (na língua indígena tupi-guarani, “peixe-boi”). Ao longo de 26 meses, mais de 300 comunidades foram visitadas, com atividades de educação ambiental. Muita gente aprendeu, por exemplo, a reconhecer o peixe-boi e a comunicar à sede os casos de encalhe. Desde então, 63 filhotes órfãos já foram resgatados, e apenas 13 deles não resistiram ao socorro. Do restante, 26 foram soltos, 14 estão em reabilitação e dez formam o plantel permanente, que pode ser visitado pelo público nos oceanários em Itamaracá.
Dócil e fácil de avistar no mar ou nos rios, o peixe-boi foi caçado à exaustão até tornar-se o mamífero aquático mais ameaçado do país. Seu desaparecimento gradual teve início no século 16, quando foi morto aos montes para a retirada de carne, couro e óleo fartos, embarcados nos navios que retornavam à Europa. A pesca indiscriminada não cessou durante séculos. Nos últimos tempos, surgiu mais um problema: a devastação dos mangues, seu berçário e uma das principais fontes de alimentação da espécie.
Glutão e herbívoro, o peixe-boi come, por dia, entre 8% e 13% de seu peso. Para tanto, passa de seis a oito horas contínuas nessa atividade, se satisfazendo entre algas, capim-agulha e folhas de mangue. Só interrompe o processo de alimentação a cada 15 minutos para subir à superfície e respirar. A comida é coletada com a ajuda dos lábios móveis, adaptados para pegar chumaços de plantas. Os vegetais marinhos são duros e, para mastigá-los, o bicho se vale de um sistema de placas rígidas situadas nas partes superior e inferior da boca. “Embaixo d’água é possível ouvi-lo triturando o capim e as algas”, me disse certa vez o fotógrafo Luciano Candisani, após voltar de um mergulho na costa alagoana.
Fonte: Cidade Verde