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MATA ATLÂNTICA

Restauração não substitui florestas maduras e seus serviços ambientais inestimáveis

Por um lado, a restauração da Mata Atlântica avança, mas por outro, o bioma vem perdendo florestas maduras e seus serviços ambientais. Como equilibrar essa conta que ainda não fecha?

23 de março de 2022
Elizabeth Oliveira
13 min. de leitura
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Vista de drone da cachoeira Salto Morato, na Reserva Particular do Patrimônio Natural Salto Morato (Foto: Tales Azzi)

A Mata Atlântica acumula um histórico de devastação que se confunde com a própria construção do Brasil em seus cinco séculos de existência como país. Para suprir demandas incessantes de um modelo de desenvolvimento econômico que se sustentou em ciclos de esgotamento da natureza e de um processo de urbanização veloz e desordenado, a fragmentação dos remanescentes florestais se tornou uma das principais marcas do passivo ambiental deste bioma. Embora esforços estejam em curso, recuperá-lo e, sobretudo, reconectá-lo, não são tarefas simples. Principalmente no atual cenário político-institucional de evidente desvalorização da agenda socioambiental.

Diante dessa complexidade, uma questão central tem inquietado cientistas e ambientalistas. Como resolver a difícil equação que envolve, por um lado, o crescimento de florestas novas pelos esforços de restauração da Mata Atlântica e, por outro, a perda de florestas maduras e de seus serviços ecossistêmicos insubstituíveis. Alguns especialistas  nacionais nesta temática, ouvidos pelo ((o))eco, analisam, criticamente, esse dilema e apontam soluções possíveis. Parte delas passa pelo cumprimento do arcabouço legal brasileiro para que seja possível assegurar a proteção da natureza e o próprio bem-estar humano no presente e no futuro.

“Nos últimos anos, há um evidente afrouxamento nas ações de comando e controle e as políticas ambientais estão sendo destruídas”, analisa o pesquisador Renato Crouzeilles, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que observa que a falta de aplicabilidade prática da legislação ambiental brasileira está no centro da problemática relacionada ao aumento do desmatamento da Mata Atlântica, assim como de outros biomas. Ainda que seja um entusiasta de projetos de restauração, o pesquisador ressalta que é preocupante observar que, independentemente dos ganhos ambientais associados a essas iniciativas, um bioma já extremamente desmatado e degradado como a Mata Atlântica continua perdendo vegetação nativa. Essa inquietação inspirou a temática central de um artigo publicado em janeiro de 2021, do qual Crouzeilles é um dos autores.

Na publicação, repercutida em ((o))eco à época, os pesquisadores discutem que uma aparente recuperação da Mata Atlântica nas últimas décadas, esconde um desequilíbrio que precisa ser melhor compreendido pela ciência e pela sociedade, em geral. Isso porque o bioma tem pelo menos 11% da sua cobertura vegetal formados por florestas jovens, variando entre dez e vinte anos de existência, enquanto avança, gradativamente, o desmatamento de florestas maduras.

De acordo com dados do MapBiomas, publicados em setembro de 2021, entre os anos de 1987 e 2019, a perda de vegetação primária na Mata Atlântica foi de 31,2% da cobertura do bioma, o que representou 10 milhões de hectares no período, mais do que o dobro da extensão total do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Amapá, o maior do Brasil. Enquanto isso, em 2017, o crescimento de vegetação secundária havia alcançado 27,8 % da vegetação natural, o que significou um aumento de 9 milhões de hectares. Em um bioma com 69% de áreas modificadas pelas atividades humanas, em 2020, segundo a mesma fonte, 66% das perdas florestais ocorreram em terras  privadas.

Para dar uma ideia dos problemas envolvidos nesse panorama de desequilíbrio entre o que se ganha com a restauração e o que se perde com o desmatamento da Mata Atlântica, Crouzeilles explica que são necessários entre 50 e 100 anos para que uma floresta nova consiga prestar serviços ambientais como armazenamento de carbono e tenha diversidade de espécies no nível de uma floresta madura.

Para a solução do problema, o pesquisador afirma: “Não precisamos criar políticas novas e sim implementar as políticas que já temos”. Como exemplo, menciona a necessidade de fazer valer a Lei 12.651, de Proteção de Vegetação Nativa de 2012, o chamado Novo Código Florestal. Essa legislação – que estabelece diretrizes para a proteção da natureza em propriedades privadas – tem sofrido inúmeras resistências devido a interesses econômicos e políticos conflitantes com essa agenda. Diante desse cenário, Renato opina que os imóveis rurais precisam ser monitorados por meio de medidas mais rigorosas, como a restrição de acesso ao crédito aos seus proprietários, em caso de desacordo com o Cadastro Ambiental Rural (CAR).

Por outro lado, o pesquisador considera que grande parte da sociedade já está conseguindo compreender melhor a relação de interdependência entre proteção da natureza e equilíbrio climático, o que tende a impulsionar ações em redes de articulação para o enfrentamento dos dilemas socioambientais nacionais, independentemente das iniciativas governamentais.

Nessa perspectiva, ele analisa que para além da importância das unidades de conservação, espera ver benefícios também nas áreas rurais privadas, como o pagamento por serviços ambientais para os proprietários que estão conseguindo manter fragmentos de floresta bem conservados. Talvez essa seja uma alternativa para evitar que eles cortem as florestas secundárias, ainda em processo de crescimento.

Em contrapartida, o pesquisador considera que as empresas têm importância central para os avanços necessários às agendas do equilíbrio climático e da conservação da biodiversidade no Brasil. Ele acredita, também, que o movimento ESG (Governança Social e Ambiental, na sigla em inglês) representa um caminho promissor para a busca de soluções de recuperação e proteção da Mata Atlântica. Mas alerta que as práticas empresariais precisam ser monitoradas pela sociedade para que se tenha certeza de que as corporações não estão “fazendo propaganda enganosa”.

Crouzeilles ainda destaca o papel desempenhado pelas ONGs, em ações com resultados concretos para a recuperação florestal do bioma como o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, que prevê a restauração de 15 milhões de hectares, até 2050.

Por que não conseguimos zerar o desmatamento da Mata Atlântica?

A bióloga Michele de Sá Dechoum, professora do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também aponta a falta de infraestrutura institucional como um grande impedimento ao controle do desmatamento da Mata Atlântica. Segundo ela, a carência de pessoal para fiscalização preventiva é um dos principais percalços. Sem investimento público e diante de um claro panorama de impunidade, a especialista considera que a situação tem se agravado, no atual cenário político, favorecendo a prática de crimes ambientais.

Além disso, ela alerta para algumas particularidades da Mata Atlântica, bioma também dominado por ecossistemas que não são florestas. Um exemplo mencionado é o das restingas, cuja conversão da vegetação não-arbórea não é bem percebida em imagens de satélites e tampouco compreendida pela sociedade em geral. “Ecossistemas abertos são menos percebidos pelas pessoas e pouco valor é dado ao que não é árvore e floresta”, observa. “Mas proteger restingas é fundamental para o litoral”, reafirma. Dentre outras importantes funções ecológicas, esses ambientes naturais protegem as áreas costeiras do avanço do mar, questão cada vez mais emergente diante do agravamento da crise climática.

Diante de toda a complexidade envolvida, Michele considera fundamental ampliar as ações educativas para despertar na sociedade o comprometimento com a proteção da natureza e também o sentido de cobrança por ações concretas da gestão pública. “Existe uma ideia equivocada de que proteger a natureza atrapalha o desenvolvimento econômico”. Para ela, a postura precisa ser outra, sobretudo, em um país líder global em diversidade biológica como o Brasil.

Para Fabio Scarano, professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, não adianta somente restaurar áreas degradadas como solução para a recuperação da Mata Atlântica. Ele concorda que, o que falta no Brasil, é “cumprir a lei” para não perdermos mais florestas maduras. “O país tem base legal e científica para orientar processos de tomadas de decisão em favor da proteção da natureza e dos interesses coletivos”, observa.

Além do Código Florestal, revisado em 2012, mas ainda sem uma real implementação nacional, Scarano recorda que o país tem a Lei da Mata Atlântica, de 2006, que vem sendo descumprida pelos municípios brasileiros, cujos prefeitos continuam autorizando desmatamento para obras de infraestrutura.

Scarano ressalta que a maioria das espécies ameaçadas de extinção, no Brasil, está na Mata Atlântica e alerta que, em tempos de agravamento da crise climática, manter os seus ecossistemas sob esse estado de pressão representa um risco de múltiplas dimensões. Reforça, ainda, que o bioma reúne todas as qualidades para sair da condição de hotspot (são 36 ambientes globais de maior relevância em biodiversidade e fortemente ameaçados pelas atividades humanas), podendo se tornar uma vitrine internacional de sustentabilidade. “Podemos cumprir a lei e transformar a Mata Atlântica num ponto de esperança para o clima, a biodiversidade, a geração de empregos e a inclusão social”, analisa.

Essa perspectiva otimista de recuperação da Mata Atlântica foi tema de artigo publicado em 2018, como parte de uma pesquisa da doutoranda Camila de Rezende, orientada por Scarano. O título em inglês faz um trocadilho entre hotspot e hopespot (algo como de ponto quente a ponto de esperança). Nessa publicação, na qual ambos se juntaram a outros pesquisadores de referência internacional, foi argumentado que, até então, os remanescentes da Mata Atlântica eram estimados entre 11% e 16%, mas utilizando uma tecnologia de mapeamento por satélite com a maior resolução, eles indicaram que a cobertura vegetal alcançava 28% do bioma, o que representava 32 milhões de hectares de vegetação nativa. Simultaneamente, identificaram a existência de 7,2 milhões de hectares de matas ciliares degradadas, dos quais 5,2 milhões de hectares devem ser restaurados, antes de 2038, pelos proprietários rurais para cumprimento do Código Florestal.

Segundo Scarano, mais de 80% do que restou dessas florestas nativas estão em áreas fragmentadas e em terras privadas que precisam ser reconectadas para tornar viável a proteção da biodiversidade no longo prazo, dentre outras funções ecológicas. Ele ressalta que as Áreas de Preservação Permanentes (APPs) podem desempenhar muito bem esse papel de conectar áreas protegidas públicas e privadas da Mata Atlântica. E estima que se o processo de restauração for bem planejado, a cobertura de vegetação nativa pode chegar a 35% do bioma, outro aspecto mencionado no artigo publicado.

Na Década da ONU da Restauração de Ecossistemas, entre 2021 e 2030, e diante de sinalizações internacionais como a da meta de neutralidade de carbono da Europa, em 2030, Scarano considera que o Brasil tem duas opções: “ou saímos na frente, demonstrando capacidade e desenvolvendo parte da nossa economia com isso, ou ficamos a reboque de um movimento que tende a avançar no mundo”. O pesquisador alerta que a União Europeia é um parceiro comercial importante para o país e que esse bloco econômico vai ampliar restrições para eliminar produtos da pauta de importações que tenham riscos de vinculação com desmatamento e outras ilegalidades. “Se continuar desmatando, o Brasil vai perder parceiros”, alerta.

O Relatório Temático sobre Restauração de Paisagens e Ecossistemas sinalizou, em 2019, que a partir da restauração de 12 milhões de hectares de vegetação nativa, o Brasil poderá sequestrar 1,39 Mt de CO2 (dióxido de carbono) até 2030. Para isso, precisará ser cumprido o Código Florestal e fortalecido o Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (Plano ABC). O documento destaca que esse esforço ainda permitiria “a recuperação adicional de 15 milhões de hectares de pastagens degradadas e o incremento de 5 milhões de hectares de sistemas de integração lavoura-pecuária-florestas (iLPF)”, também até 2030.

Com essas medidas, o país poderia gerar entre 112 mil e 191 mil empregos anuais até 2030. Estima-se que, a cada 1.000 hectares em restauração com intervenção humana, 200 empregos diretos são gerados. Isso envolve atividades como coleta de sementes, produção de mudas, plantio e manutenção.

Restauração florestal pode gerar a criação de 200 empregos diretos para cada mil hectares em restauração com interferência humana. Dados: BPBES/IIS. (Foto: Augusto Gomes)

A experiência pioneira da SOS Mata Atlântica

Luis Fernando Guedes Pinto, diretor de conhecimento da Fundação SOS Mata Atlântica, é outra voz que se soma ao debate sobre a falta de aplicabilidade da legislação ambiental para frear o desmatamento da Mata Atlântica. Ele observa que em algumas fronteiras do bioma, há produtores desmatando 1 hectare, extensão que as imagens de satélite não conseguem enxergar. A segunda frente de pressão envolve o crescimento urbano, pelo qual se multiplicam pequenas áreas desmatadas para dar lugar a condomínios, galpões e outras obras que pressionam mangues, restingas e demais ecossistemas do bioma.

Guedes Pinto acrescenta a esse conjunto de fatores de pressão, o avanço do crime organizado que, nos grandes centros, vem promovendo loteamentos e construções ilegais que colocam em risco os ecossistemas. “A fiscalização é falha. Chega tarde”, observa. Segundo ressalta, dados do Projeto MapBiomas indicam um nível de ilegalidade do desmatamento no bioma da ordem de 90% e acrescenta que existem autorizações questionáveis nos processos.

O Atlas da SOS Mata Atlântica, divulgado em 2021, indica que 13.053 hectares (130 quilômetros quadrados) de florestas maduras foram derrubados entre 2019 e 2020. Apesar de ter representado uma queda de 9% em relação ao apurado entre 2018 e 2019, o diretor considera o resultado preocupante diante das condições do bioma. “Estamos perdendo florestas raríssimas que são protegidas por lei e que não poderíamos mais perder de forma alguma”, afirma.

Segundo observa, o bioma “ainda não está em uma rota segura”, pois vive essa forte contradição entre o ganho de novas áreas florestais, embora cortadas antes de alcançarem dez anos de existência devido a brechas legais, e a perda de vegetação nativa madura e seus serviços ecossistêmicos insubstituíveis.

A distribuição desigual do que sobrou e a dificuldade de reconexão de fragmentos são outros desafios. Apesar disso, o diretor ressalta que a Mata Atlântica é um dos poucos hotspots globais que pode se recuperar. Para isso, destaca que o Brasil tem capacidade de articulação social, competência científica, políticas públicas de importância reconhecida, dentre outras vantagens para fazer valer esse propósito.

Rafael Bitante Fernandes, gerente de Restauração Florestal da SOS Mata Atlântica, explica que a organização ambientalista tem empreendido inúmeros esforços pela proteção e também pela recuperação do bioma. Com 42 milhões de mudas plantadas, 23 mil hectares já foram restaurados desde 2000, esforço que envolve ações como prospecção de propriedades, plantio, manutenção e monitoramento. “É um trabalho bem complexo. Mas tem ciência por trás de tudo”, observa. Para essas ações, o carro-chefe é o programa Florestas do Futuro.

Mobilizar os proprietários rurais tem sido uma das missões mais desafiadoras. Esses são elos fundamentais do processo, considerando que devido à forma de ocupação, historicamente o bioma “é quase uma entidade privada”, como compara Fernandes. Apesar disso, ele assegura que os projetos “viram vitrines” nas regiões onde são implementados. Nesses 20 anos, as ações de restauração já mobilizaram 3 mil proprietários.

Outro percalço envolve a implementação de projetos em territórios onde não existe a cultura da restauração florestal. Isso significa que a cadeia precisa ser iniciada do zero com a formação de coletores de sementes, além de grupos para as ações de plantio, monitoramento e outras demandas. Em cenários de crise climática, perda de biodiversidade e escassez hídrica, a boa notícia é que existe interesse crescente das empresas por essas iniciativas de recuperação do bioma e seus serviços ambientais. “Nove entre dez empresas que nos procuram estão preocupadas com isso”, conclui.

Fonte: ((o))eco

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