Passado o tumulto do período natalino, gostaria de me arriscar em algumas reflexões. Duas coisas boas e duas más eu vejo nas festas de fim de ano, nestes tempos em que inocência é uma palavra que se perdeu. Vou começar pelas más: 1º) a comilança: penso sinceramente que, apesar da motivação solidária nas ceias, come-se demais nessas ocasiões, muito mais do que se deveria, quase sempre uma fartura de carnes que contribui para a obesidade humana e que leva à morte uma quantidade inimaginável de animais; 2º) os fogos de artifício: não bastasse a orgia gastronômica compartilhada, muitos recepcionam o ano-novo ao som de morteiros e rojões, acarretando pânico e acidentes fatais sobretudo em cães, que correm desnorteados em meio à balbúrdia. Sem esses excessos culinários ou festivos viveríamos, sem dúvida, em uma sociedade bem mais justa e respeitosa.
Quanto às coisas boas, elas têm a ver com a filosofia na sua sondagem existencial. 1º) o alarme: as pessoas (adultas) tendem a fazer um balanço da própria vida, repensando suas prioridades e, às vezes, tomando consciência da fragilidade inerente à sua própria condição; 2º) as resoluções: elas até que podem parecer tolas ou fugidias, mas se levadas a sério têm o condão de motivar transformações pessoais. Quando digo isso quero me referir, por exemplo, a todos aqueles(as) cuja ficha caiu depois de assistirem “A Carne é Fraca” e, então, decidiram ser vegetarianos(as). Conheço gente que começou assim, a partir de uma simples promessa de novo-ano, para aderir de vez ao movimento de defesa animal. Tomara que este ano o fato se repita e a causa tenha cada vez mais adeptos.
Falando neste assunto – resoluções -, soube que nove entre dez pedidos feitos mediante simpatias ou superstições têm a ver com o encontro da sonhada cara-metade ou, então, o descobrimento de alguma fórmula mágica que traga dinheiro ou faça perder peso. Boa sorte a todos em seus objetivos de vida, embora eu continue acreditando que a melhor resolução possível ainda é a conscientização ética pelos animais, que se pode tornar um ideal, uma bandeira, uma razão de viver. Aqui do meu cantinho não tenho do que reclamar. Realizei aquilo a que me propus durante o ano e pretendo agora, além de prosseguir no trabalho intelectual de sempre, ser o goleiro da equipe de futebol máster (quarentões para cima) da CEPEUSP. Se isso vai dar certo, ou se irei pendurar de vez as chuteiras, só deus sabe.
E eu, que nunca fui atleta nem poeta (considero-me centroavante frustrado e versejador bissexto), quero terminar esta crônica com um dos mais belos poemas de Thiago de Mello, publicado no livro “Faz Escuro Mas Eu Canto”. Trata-se de uma espécie de resolução universal em favor da paz e da liberdade, realizada pelo autor em forma de decreto poético. Nem é preciso dizer que naquela época o Brasil caía sob uma ditadura e o poeta amazonense, então nosso adido cultural no Chile, passou a ser hostilizado e perseguido pelo governo militar. Que os versos de Thiago de Mello possam, hoje e sempre, inspirar novas resoluções, fazendo com que possamos, a cada dia, despertar para as causas justas.
OS ESTATUTOS DO HOMEM (Ato Institucional Permanente)
Artigo I: Fica decretado que agora vale a verdade/ que agora vale a vida/ E que de mãos dadas/ trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II: Fica decretado que todos os dias da semana/ inclusive as terças-feiras mais cinzentas/ têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III: Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas/ que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra/ e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV: Fica decretado que o homem/ não precisará nunca mais duvidar do homem/ Que o homem confiará no homem/ como a palmeira confia no vento/ como o vento confia no ar/ como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único: O homem confiará no homem/ como um menino confia em outro menino.
Artigo V: Fica decretado que os homens/ estão livres do jugo da mentira/ Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio/ nem a armadura das palavras/ O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo/ porque a verdade passará a ser servida/ antes da sobremesa.
Artigo VI: Fica estabelecida, durante dez séculos/ a prática sonhada pelo profeta Isaías/ e o lobo e o cordeiro pastarão juntos/ e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII: Por decreto irrevogável fica estabelecido/ o reinado da justiça e da claridade/ e a alegria será uma bandeira generosa/ para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII: Fica decretado que a maior dor/ sempre foi e será sempre/ não poder dar-se amor a quem se ama/ e saber que é a água/ que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX: Fica permitido que o pão de cada dia/ tenha no homem o sinal de seu suor/ Mas que sobretudo tenha sempre/ o quente sabor da ternura.
Artigo X: Fica permitido a qualquer pessoa/ a qualquer hora do dia/ o uso do traje branco.
Artigo XI: Fica decretado, por definição/ que o homem é um animal que ama/ e que por isso é belo/ muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII. Decreta-se que nada será obrigado nem proibido/ Tudo será permitido/ inclusive brincar com os rinocerontes/ e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo XIII: Fica decretado que o dinheiro/ não poderá nunca mais comprar/ o sol das manhãs vindouras/ Expulso do grande baú do medo/ o dinheiro se transformará em uma espada fraternal/ para defender o direito de cantar/ e a festa do dia que chegou.
Artigo Final: Fica proibido o uso da palavra liberdade/ a qual será suprimida dos dicionários/ e do pântano enganoso das bocas/ A partir deste instante/ a liberdade será algo vivo e transparente/ como um fogo ou um rio/ e a sua morada será sempre o coração do homem.
Thiago de Mello (Santiago do Chile, abril de 1964)