Quer dizer que se alguém trata bem um animal, mesmo que tratar qualquer animal já seja um manejo não natural e pressuponha interferência e domínio sobre o corpo dele, então a pessoa pode usá-lo, explorá-lo e matá-lo, compensando, assim, com o “abate humanitário”, o grande trabalho que teve para manter o corpo do animal em condições de uso e consumo futuro das carnes dele.
Para os bem-estaristas, o conforto dado ao animal é um investimento ou moeda de troca com o qual julgam quitar sua dívida de vida e morte para com o animal. Assim, parece não sentirem o peso de sua consciência por continuar a pensar que animais nascem para serem usados e mortos pelos humanos. É fato que os humanos querem porque querem esconder de si mesmos que também são animais, que também nasceram, vivem e morrerão sem ter galgado um degrau sequer além de sua condição material de vida animal. Matar animais é uma forma de despistar a própria consciência, distanciar-se da verdade dura que revela nossa condição material vulnerável, perecível. Ao matar o outro nos sentimos mais fortes, mais resistentes. Vivemos buscando na fantasia uma imortalidade que não combina com a natureza corpórea, na qual tudo é passível de passar de vez, sem retorno.
Abolicionismo animalista vegano, que causa é esta? É a concepção ética que reconhece, sem discriminar, a igualdade da condição senciente de todos os animais. Ela visa a abolição da crença milenar de que os humanos têm direito de vida e morte sobre todos os outros animais, incluídos aí o de usar, abusar, escravizar e matar animais outros que não os humanos para servir a quaisquer propósitos humanos, da alimentação à diversão, da ciência à moda e à cosmética, da guerra a novas tecnologias. Para tudo o que consumimos eliminamos as vidas de bilhões de animais.
Em meio a todas as diferenças encontradas ao redor do planeta entre todas as espécies animais e cada indivíduo animal, jamais se encontrou uma capacidade sequer que tornasse ético o uso de seres que sofrem os tormentos que os humanos lhes infligem por aprisiona-los, usá-los, explorá-los e matá-los para benefício próprio. Quem inventa tal diferença baseada em habilidades tidas por superiores na nossa espécie é a moral humana, padecendo há milênios de uma grave deficiência (kakothymía).
E o reducionismo de tanta dor não basta? Não mesmo. Reduzir a dor em alguns animais para continuar a causá-la logo em seguida ou continuar a causá-la em outros indivíduos não torna ética qualquer ação ou decisão, pois a não dor de um animal ou sua menor dor não é moeda de troca para legitimar que se a cause em outros. Nenhuma vida humana está aqui para ser usada no lugar de outra, pois não há uma vida sequer que valha por duas. Nenhuma vida animal de qualquer outra espécie não humana também. Toda existência animal é irrepetível. Nenhuma pode compensar a morte de outra. Em cada animal há uma consciência que registra de forma peculiar as experiências que lhe asseguram continuar vivo. Cada animal é um corpo único e uma mente singular. Nesse sentido, a morte de um animal é a morte de uma consciência existencial, ainda que os objetos impregnados nessa consciência e as emoções que permitiram tal gravação sejam singulares para cada indivíduo em cada uma das espécies animais. Do ponto de vista do animal, sua consciência é tão valiosa para ele quanto o é a nossa própria para nós.