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MANIFESTO

Quando uma abordagem humana ofusca a ética animal

7 de maio de 2025
Silvana Andrade
7 min. de leitura
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Foto: Sorapong/Shutterstock

A interseccionalidade nasceu como uma ferramenta analítica essencial para compreender como diferentes sistemas de opressão humana — como racismo, sexismo, capacitismo e classismo — se sobrepõem e se reforçam mutuamente. Pensadoras como Aph Ko, expoente do veganismo negro, ampliam esse olhar ao expor as raízes coloniais da exploração animal, demonstrando como a dominação de outras espécies se articula com a lógica do poder que subjuga humanos marginalizados.

No entanto, quando essa lente é aplicada de maneira acrítica e mecânica à causa animal, pode paradoxalmente se tornar um entrave ao avanço do movimento pelos direitos animais. Isso ocorre na medida em que desloca o foco do debate ético da libertação dos sujeitos não humanos — seres sencientes brutalmente explorados — para uma centralidade excessiva nas dinâmicas humanas, seus conflitos e identidades.

Embora a perspectiva interseccional ofereça uma análise importante das opressões humanas, ela pode obscurecer a urgência da questão animal, que precisa ser tratada de forma independente. Em espaços que deveriam servir à libertação animal, vemos surgir um novo tipo de censura ideológica: uma vigilância constante sobre palavras e posicionamentos que restringem o uso de termos e discursos apenas ao contexto humano, desviando o foco das ações concretas contra a violência sistemática imposta às outras espécies.

Em 2023, um coletivo vegano dos Estados Unidos foi duramente criticado e acusado de ‘apropriação discursiva’ ao estabelecer paralelos entre os matadouros e os campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. As acusações desconsideraram que a analogia não é nova, nem ofensiva em sua essência — sobretudo quando é feita por aqueles que vivenciaram diretamente os horrores que ela evoca, conferindo-lhe legitimidade histórica e moral.

É o caso de Alex Hershaft, sobrevivente do Gueto de Varsóvia, vegano e co-fundador do Farm Animal Rights Movement (FARM), que há décadas traça essas conexões com clareza e firmeza. Para Hershaft, a industrialização da morte, a categorização de seres como ‘subalternos’ e a normalização da crueldade são elementos comuns que atravessam tanto a opressão humana quanto a animal.

Sua perspectiva assim como de outras vítimas diretas de genocídios, bem como pensadores judeus profundamente marcados pelas atrocidades nazistas, traçaram paralelos contundentes entre a opressão humana e o sofrimento infligido aos animais. Isaac Bashevis Singer, premiado com o Nobel de Literatura, afirmou que ‘para os animais, todos os homens são nazistas’, denunciando a brutalidade com que tratamos os seres de outras espécies. Edgar Kupfer-Koberwitz, que foi prisioneiro no campo de concentração de Dachau (Alemanha), relatou ter reconhecido nos olhos dos animais o mesmo terror que testemunhou entre os prisioneiros dos campos de extermínio.

Charles Patterson, em seu livro Eternal Treblinka, expõe a conexão histórica irrefutável: os métodos industriais de abate, ou melhor, de assassinato animal – sim, assassinato, pois não há eufemismo que apague o sangue da verdade – foram meticulosamente adaptados para o extermínio em massa de humanos. Sua reflexão apresenta o roteiro detalhado da barbárie: a mesma lógica que transformou seres sencientes em “unidades de produção” nos matadouros de Chicago foi replicada nos campos de concentração nazistas. Ele não equipara sofrimentos, mas comprova os semelhantes mecanismos de desumanização.

A importância desses testemunhos reside precisamente no alerta sobre os perigos de uma moralidade seletiva, de paralelos retóricos. Quando naturalizamos o sofrimento institucionalizado de qualquer grupo – humano ou não humano – corroemos a fronteira ética que protege todos os seres.

Ao mesmo tempo, expressões como ‘escravidão animal’ são apagadas em grupos veganos nas redes sociais e em palcos abolicionistas, sob a justificativa de que ‘diluem a experiência humana’. Essa forma de censura não ampara os oprimidos — somente resguarda o status quo da dominação e da exploração de outras espécies.

A premissa que sustenta o abolicionismo é clara e inegociável: causar sofrimento a qualquer ser senciente é uma injustiça, independentemente do tempo, do lugar ou da cultura. Toda forma de exploração animal é eticamente inaceitável, pois viola os princípios universais de dignidade e respeito à vida. Quando a ética universal é flexibilizada para não ferir sensibilidades humanas, acabamos, mesmo sem perceber, sustentando a lógica da discriminação por espécie — sob a aparência de uma justiça que, na verdade, é seletiva e excludente. Isso significa priorizar algumas causas legítimas em detrimento de outras igualmente urgentes, como a libertação animal, criando uma hierarquia de sofrimentos que perpetua a exclusão dos animais da esfera moral. E assim, o rigor ético da proposta abolicionista é substituído por acomodações discursivas que enfraquecem a denúncia e se alinham ao especismo.

Uma ética radical não ergue fronteiras morais entre espécies, porque reconhece que a capacidade de sentir dor, medo, amor e desejo de viver não é privilégio humano. Reconhecer e garantir os direitos animais é aprofundar os fundamentos de justiça, de respeito e de liberdade — para todos os seres sencientes, humanos e não humanos.

Negar que a subjugação animal constitua uma forma de escravidão revela uma cumplicidade — inconsciente ou não, mas ainda assim concreta — com a lógica da dominação de espécies. Reduzir o conceito de escravidão exclusivamente às experiências humanas ignora sua essência: a apropriação do corpo, da liberdade e da vida de um ser senciente por outro que detém poder.

Foto: Governo Federal

Se todos os corpos importam, então os corpos dos animais também devem importar. Não há justificativa válida – seja cultural, ideológica ou histórica – para a escravização e abuso recorrente de seres sencientes.

Vivemos tempos difíceis, em que é necessário confrontar e afirmar o óbvio: a escravidão animal é a base oculta e naturalizada de múltiplas formas de dominação, é escravidão em sua forma mais crua e institucionalizada. Negá-la é colaborar com sua continuidade; e reforço, negá-la é especismo.

No próprio movimento pelos direitos animais no Brasil, temos testemunhado uma crescente marginalização das vozes abolicionistas, enquanto a urgência da libertação animal se perde em um mar de relativismos políticos que diluem a gravidade da violência sistemática contra outras espécies. O que deveria ser um chamado à ruptura radical com todas as formas de dominação torna-se um campo de concessões, onde o flagelo de outras espécies é novamente empurrado para a beira da última borda da periferia do debate moral.

A libertação animal não precisa — e não deve — ser mediada por hierarquias morais humanas. Essa luta exige foco, consistência e coragem ética. Os animais de outras espécies estão entre os seres mais oprimidos da Terra, sem sequer o reconhecimento básico de garantias fundamentais. Suas realidades de dor são negligenciadas nas agendas políticas que deveriam garantir a dignidade de todos os seres sencientes.

A ideia de que valores morais devem ser interpretados com base no contexto cultural e social de cada grupo aprisiona os direitos animais em um cárcere simbólico e perigoso. Quando tudo se torna relativo, nada parece urgente, e as vidas dos animais continuam sendo escravizadas em nome de uma conveniência moral que ignora a agonia real.

Defender os direitos animais não significa desconsiderar outras lutas, ao contrário, é expandir o alcance da ética, abrangendo e desafiando todas as formas de opressão. Ao ampliar nosso compromisso com a justiça, estamos rompendo as cadeias da instrumentalização animal e questionando as estruturas opressivas que são naturalizadas e invisibilizadas pela cultura dominante.

Ainda que pareça um ideal distante, a verdadeira justiça é aquela que deveria reconhecer o valor da vida em cada ser, independentemente da espécie. Lutar pelos direitos animais é uma expressão de solidariedade que conecta todas as causas pela dignidade e liberdade e pelo direito de viver feliz e livremente de todos os seres que habitam este planeta, inclusive nós.

A esperança de um futuro equilibrado está intrinsecamente ligada ao fim do martírio imposto a todas as espécies, precisamos romper com as estruturas que ainda os mantêm subalternizados. Sem a superação da violência contínua contra os animais, não haverá justiça climática, nem equilíbrio ecológico, nem mínimas condições de vida. Educar as novas gerações na ética da não violência é semear as bases de uma civilização consciente, que renuncia à lógica da dominação e escolhe se alimentar do respeito profundo e incondicional por todas as formas de vida.

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