Cathy Rodrigues
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“(…) A cachorra Baleia estava para morrer. Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. (…) Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás.”
Ao ler o livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, o trecho acima foi, de todas as passagens da obra, a que mais me tocou. Talvez porque, por diversos instantes, imaginei que um dia, a história da partida de Baleia poderia ser, sob outras nuances, o “sono” do meu cachorro Duque.
No dia em que Duque se foi, amanheceu chovendo, o céu completamente encoberto. O dia parecia triste, feio. Ele não quis despedidas. Esperou que todos fossem dormir, para que ele pudesse então, dormir também, um sono profundo e tranquilo.
Mesmo assim, me despedi dele na madrugada anterior a sua partida. Passei a mão sobre seu corpo já cansado, arqueado, magro e envelhecido pelo tempo, e quando repousei minhas mãos em sua cabeça, seus olhos fundos e perdidos me olharam, e naquele instante, eu senti a mesma tristeza e sentimento por Baleia.
Da raça fila brasileiro, pelo rajado em tons de mel, branco e preto, meu príncipe canino chegou trazido por minha mãe, ainda com poucos meses de vida. Ao contrário da cachorra Baleia (que doente, morreu com um tiro de sacrifício dado por seu dono), Duque morreu de velhice. E creio também em tristeza: tristeza por não poder mais correr por aí como fazia antes com energia e alegria.
Duque tinha classe ao andar, correr e sentar-se: as patas dianteiras uma sobre a outra, como duas pernas cruzadas, e a cabeça sempre ereta (acho que minha mãe notou isso, daí o nome de realeza!).
Foram tantas as festas e comemorações que ele presenciou em nossa casa, sempre observador e atento! Foram tantas as escapadas dele pelo portão! Foram tantas as galinhas e gatos perseguidos por ele! Foram tantos os passeios, descobertas, aventuras! Ele conhecia bem o bairro onde viveu por mais de 12 anos!
Horas antes de sua partida, Duque aproveitou o portão aberto (propositadamente) e aproximou-se da calçada, onde por alguns instantes, ficou parado, observando a rua, os carros e pessoas a passarem, os sons, as luzes. E sem dar um passo a mais, voltou para dentro de casa, como nunca havia feito antes.
Diante da força e da beleza da existência de Duque, prefiro pensar que a morte dele tenha sido tão poética quanto foi a de Baleia. Mesmo sucumbido pela proximidade da morte, Duque ainda nos olhava com a mesma ternura e lealdade de sempre, e bastava dizer o seu nome para lhe despertar o parco ânimo que ainda lhe restava, fazendo-o abanar o rabo levemente.
Sei agora que Duque, assim como Baleia, quis dormir. E certamente, acordou em um mundo cheio de carne assada que ele tanto apreciava, assim como biscoitos, salsichas, sorvete e ossos suculentos para roer sem fim. Em sua nova casa, ele ainda terá os tapetes que tanto gosta para se deitar. Desejo que em seu novo lar não tenha foguetes e rojões que muito o assustavam, fazendo-o se esconder dentro de casa feito criança assustada.
Desejo ainda que neste paraíso de prazeres caninos, meu querido amigo não precise mais de banhos frios, e que tenha um quintal enorme com galinhas gordas e ligeiras (porque ele sempre gostou de desafios!), e que haja também árvores pequenas, para que ele possa fazer xixi em seus caules.
Tudo bem se Duque “esqueceu” de levar consigo seu pedaço de toalha verde, onde costumava repousar seu velho corpo nas últimas semanas, porque agora, ele tem uma toalha branca e macia feito nuvem para se deitar, dormir e roncar como fazia por aqui. Sei que meu cachorro agora vive em um mundo cheio de galinhas para correr atrás […]”