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ARTIGO

Quando normalizamos o tráfico de animais?

26 de abril de 2023
Vitor Calandrini*
3 min. de leitura
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Foto: Ilustração | Freepik

O tráfico de animais é uma realidade e nossa sociedade convive com essa situação motivada, principalmente, pela utilização de animais silvestres para entreter e fazer companhia. A pergunta que faço é: quando isso tornou-se normal?

De antemão, gostaria de esclarecer que há exceções e não são todas as pessoas que consideram “normal” pássaros em gaiolas ou serpentes em viveiros. Mas, de fato, para grande parte da população é normal possuir animais silvestres em situação de domesticação ou até mesmo encontrá-los nessa situação, endo vendidos em feiras, por exemplo, e simplesmente passar ao lado como se não fosse nada. Como isso pode ser explicado?

Não há uma teoria cientifica amplamente aceita sobre a origem desse comportamento ou que indique as motivações para pessoas não se incomodarem com essa situação, mas uma das explicações pode ser nossa história como nação colonizada. Não a dos povos originários brasileiros, que coabitavam as florestas com os animais, pois compartilhavam de fato os espaços e os recursos e tinham uma visão de real convivência com as demais formas de vida. Estou tratando dos chamados “descobridores”, que desde 1500 aproveitavam as grandes navegações para levar, junto com recursos minerais e madeiras, animais silvestres para comercializar na Europa.

Duas atividades continuaram acontecendo, mesmo com a vinda de outras gerações: a coabitação com animais silvestres e o animal silvestre servindo como fonte de recurso financeiro – sempre um existindo com a possibilidade do outro ocorrer, a depender da necessidade e da situação que se apresenta. Não é aqui uma culpa única do colonialismo, pois as gerações seguintes mantiveram o costume como forma de manutenção da renda através do comércio de animais silvestres, sempre muito valorizado e pouco repreendido no contexto global.

Em uma evolução natural, com as descobertas dos riscos para a biodiversidade e as discussões sobre os direitos dos animais, normativas e ações de fiscalização começaram a surgir para coibir essa prática milenar de dominação do animal não humano e, no caso brasileiro, a prática secular do comércio de fauna silvestre.

Somente na segunda metade do século 20 inicia-se uma cisão nas raízes “nacionais”, com a proibição e a repressão da “parte europeia” de nossa cultura, representada pelo comércio de animais silvestres capturados na natureza. A legislação permitiu os criadores autorizados e manteve a raiz “nativa” de nossa formação cultural, com a possibilidade da coabitação com animais em ambiente doméstico – ainda que sejam espécimes silvestres advindos do tráfico, que é a exceção prevista no parágrafo 2° do artigo 29 da Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais):

“No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.”

Ao fazer essa breve reflexão, chego à conclusão de que nunca normalizamos o tráfico de animais. Na verdade, ele é o normal histórico de nosso país e o que estamos começando a modificar esse olhar, tentando normalizar que não é porque é cultural que uma prática é correta. Já até entendemos que a visão europeia de fauna que nos foi imposta é incorreta e criminosa. Mas e a raiz nativa, é correta?

Nesse caso, remonto ao início de meu texto, em que cito a ocorrência da coabitação entre nativos e fauna silvestre por relações de compartilhamento de hábitat e recursos; o que não é a realidade do povo brasileiro atualmente. Temos de entender que não podemos nos apropriar de apenas parte da cultura nativa sem compreender seu contexto e realidade e utilizá-la como desculpa para justificar o cárcere da fauna.

Dessa forma, neste mês de abril, mês que alguns comemoram o “descobrimento” do Brasil, é sempre um exercício revisitar o passado para entender o presente e tentar estimar um futuro melhor para nós e nossa fauna.

Fonte: Fauna News

*Primeiro-tenente da PM Ambiental de São Paulo, onde atua como chefe do Setor de Monitoramento do Comando de Policiamento Ambiental. Mestre e doutorando em Sustentabilidade pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP).

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