Por Allan Menegassi Zocolotto [1]
Na quase totalidade dos casos, embalagens e propagandas de produtos de origem animal são representativas de um “romantismo rural”. Os métodos de criação ilustrados são aqueles que se praticavam a tempos passados ou em produções de pequena escala, sendo os animais, supostamente, “bem tratados” e mantidos com seus “comportamentos naturais”. O que se vende é a imagem de que os animais vivem e transformam-se em alimento humano, sem horrores ou traumas. Poderíamos até pensar que se trata, tão-somente, de um engano, porém, não é apenas isso. O cerne da questão: mente-se sobre a realidade, e essa mentira passa isenta de críticas.
Os animais são vistos como objetos, artigos de posse e usufruto humanos e, por isso mesmo, a criação de animais e a produção de alimentos com base neles não causa estranheza alguma por parte da maioria das pessoas. A despeito do que nós, abolicionistas, queremos, essa realidade parece estar longe de se alterar. Por mais que assim seja, deveríamos dentre outras coisas, exigir que, por objeção de consciência, em respeito à tão defendida verdade, ficassem proibidos os mascaramentos (e quem sabe com isso, mais e mais pessoas, tomando ciência da verdade, abolissem, pra começar, a carne do cardápio).
A alusão a uma realidade inexistente deveria não ser permitida. Todo produto de origem animal deveria trazer em sua embalagem imagens do real “processo de fabricação”. Elas deveriam exibir a verdade sobre a indústria da carne e derivados com fotografias reais dos criadouros e abatedouros. Ninguém merece ser protegido dessa verdade. As pessoas precisam saber o que está envolvido com o “inocente” hábito de consumir carne, leite, ovos e derivados que as tradições e ciências mantêm e impõem.
Mesmo os mais “sensíveis” consumidores de carne, desprovidos de coragem ou necessidade de matar pelas próprias mãos deveriam saber que suas escolhas “limpas de sangue” demandam que outras pessoas (quase sempre sem escolha) tenham que perder a compaixão, criar coragem, engolir o asco e sujar as mãos, em abatedouros, frigoríficos e açougues[2]. Aos “consumidores limpos” precisa ser repassado todos os ônus – econômicos, ambientais, sociais e éticos – da morte provocada de animais para servir de alimento a humanos.
No ano de 1996, foi promulgada a Lei Nº. 9.296, posteriormente modificada pela Lei Nº. 10.167, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220 da Constituição Federal[3]. Essas legislações se fizeram necessárias porque a realidade de até então era típica de uma “terra de ninguém” em que imperavam os interesses dos grandes fabricantes e comerciantes.
Pelo menos a situação dos produtos do tabaco mudou ostensivamente. As antigas propagandas de cigarro que exibiam modelos jovens, bonitos, bem-sucedidos, aventureiros e saudáveis, incentivando o consumo de cigarros como que pré-requisito para a obtenção de um estilo de vida invejável foram proibidas[4]. Percebeu-se a incoerência por trás dessas propagandas. Perfídia, deslealdade, falsidade, mentira, fraude, hipocrisia, fingimento, impostura, mascaramento, dissimulação, obnubilação: essas são palavras que nos servem para descrever aquela realidade.
Graças à lei, hoje, todos os produtos fumígeros devem trazer em suas embalagens, advertências do Ministério da Saúde. Os textos e as imagens são diversos e chocantes – porém verdadeiros. Os problemas relacionados com o tabagismo e comunicados são: necroses, gangrenas e amputações; câncer de pulmão e enfisema; derrame cerebral; doenças do coração; impotência sexual; aborto espontâneo; câncer de boca e perda de dentes; câncer de laringe; partos prematuros e nascimento de crianças com peso abaixo do normal; asma, pneumonia, sinusite e alergia em crianças que convivem com fumantes.
Com base nessa conquista para a verdade, o que podemos afirmar sobre as propagandas e embalagens de produtos animais atualmente em exibição e circulação? A semelhança não é nada forçada[5]. Do mesmo modo que anteriormente, pinta-se um quadro imaginário, mascara-se a realidade, vende-se uma ideia falseada: a das “vaquinhas felizes” em “campos floridos” que têm suas vidas drenadas de seus corpos de modo rápido e indolor. Quase se pode “ler” um altruísmo por parte dos animais, como se os mesmos se entregassem voluntariamente e de bom grado à “pira sacrificial” para a manutenção das “sagradas”, “indispensáveis” e “prioritárias” vidas humanas.
A maior e mais representativa meta dos veganos é o abolicionismo animal, a expansão da comunidade moral, a instauração do senciocentrismo em substituição ao antropocentrismo que impera (não igualitariamente em todos os lugares) há alguns séculos. Entretanto, nós, veganos, devemos reconhecer – infeliz, mas realisticamente – a impossibilidade de uma instalação imediata e irrestrita, e daí a necessidade de reconhecermos nossa luta como futurista, mas futurista no sentido de ‘que antecede’, ‘que apresenta o futuro’ e não no sentido que ‘delira e dita o impossível’. A luta vegana como denunciadora de uma realidade cruel e anunciadora de um novo mundo no qual há de haver novos modos de produzir, viver e conviver que se faz material e racionalmente, baseada em “planos” estratégicos.
Para dialogar com o exposto neste artigo, seguem algumas linhas escritas por Jean Pierre Verdaguer [6].
“Se houvesse tecnologia para entender o pensamento animal, e se com ela pudéssemos escutar o que diz um porco em sua baia minúscula, muito provavelmente ouviríamos ‘por favor, irmão, eu lhe imploro, trate de convencer os humanos de que não está certo o que fazem conosco’, numa súplica que nos indicaria claramente o caminho do abolicionismo.
Sendo honestos com o porco, teríamos que responder, ‘estamos fazendo todo o possível, mas os humanos não são fáceis de lidar, são séculos de hábitos arraigados para transcender. Continuaremos lutando pela abolição com todas nossas energias. Mas, por hora, o máximo que podemos fazer é aumentar o tamanho de seu cativeiro, melhorar suas condições de vida e amenizar os horrores da sua morte’.
Como será que ele reagiria? ‘Muito obrigado por seus esforços, todo alívio é bem-vindo! E tomara que consiga nos libertar no futuro’. Ou ‘muito obrigado, mas se não pode libertar a mim e aos meus, migalhas bem-estaristas jamais aceitaremos’.”
Assim como o abolicionismo humano no Brasil (Lei Áurea de 13 de maio de 1888), ocorrido de modo não-descolado de um complexo processo sócio-histórico (lembremos que a lei da abolição foi antecedida, no âmbito das conquistas legais, pelas leis do “Ventre Livre” – de 28 de setembro de 1871 – e dos “Sexagenários” – de 28 de setembro de 1885), devemos nos entender quanto a necessidade de se fazer presente um processo sólido que ligue a ponta inicial da defesa de animais domésticos e de companhia e das medidas de bem-estarismo (“lida gentil” e “abate humanitário”) à ponta mais vanguardista que responde pelo nome de abolicionismo e direitos animais.
Levar em consideração o exposto acima não é deixar corromper nossos ideais, é sim empenho na elaboração e execução de um planejamento capaz de instaurar o senciocentrismo, ainda que não imediatamente, mas sempre de modo firme. Nós, veganos, devemos revisar nossas alianças (e desalianças). A estrada abolicionista poderá ser pavimentada nas abertas (e por abrir) trilhas “protetoras” e “bem-estaristas”, afinal, é andando que se faz o caminho.
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IMAGENS
Happy. Disponível em: <http://webenhanced.lbcc.edu/philml/phil7ml/images/Happy_Cow.jpg>; Cow farm. Disponível em: <http://photos.nslog.com/images/20090709120756_cow_farm_1.jpg>.
NOTAS
[1] Vegano, membro do Grupo Abolicionista pela Libertação Animal (GALA), formado em Pedagogia (UFES, 2007) e graduando em Ciências Sociais (UFES). E-mail: [email protected]
[2] ZOCOLOTTO, A. M. A imposição da violência. Disponível em: <https://www.anda.jor.br/?p=29270> ou em: <http://www.pensataanimal.net/artigos/142-allan-menegassi-zocolotto/345-a-imposicao-da-violencia>.
[3] Lei Nº. 9.296 de 15 de julho de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9294.htm>. Acesso em: 09 mar. 2010; Lei Nº. 10.167 de 27 de dezembro de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L10167.htm>. Acesso em: 09 mar. 2010.
[4] MATTEDI, José Carlos. Fim da propaganda de cigarros foi fundamental para queda do consumo entre jovens, avalia pesquisador. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/01/28/materia.2007-01-28.0516028868/>. Acesso em: 08 nov. 2009.
[5] Modelos jovens, bonitos e saudáveis também aparecem nas propagandas e embalagens de produtos de origem animal. A saúde é identificada, por esses recursos de marketing, com o consumo de produtos animais enquanto que, cada vez mais, parece vir se tornando unanimidade, entre médicos e nutricionistas, a informação de que a ingestão de gorduras animais é o que mais pode culminar em prejuízos à saúde humana.
[6] VERDAGUER, Jean Pierre. Abolicionismo: vanguarda utópica ou futurista. Disponível em: <https://www.anda.jor.br/?p=21068>. Acesso em: 09 mar. 2010.