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Projeto Peixe-Boi continua resgatando e reintroduzindo animais na natureza

13 de setembro de 2010
4 min. de leitura
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Por Ricardo Braga

Quando adolescente, eu costumava ir à Praça do Derby ver Xica, com seus movimentos lentos e fome insaciável, comendo o capim agulha trazido lá do estuário do Goiana, que o tratador da prefeitura lhe servia várias vezes por dia. Mas era só o que aquele enorme peixe-boi tinha para fazer, uma vez que o tanque pequeno, raso e estreito não oferecia alternativa sequer de nadar, provocando-lhe inclusive uma má formação lombar. Como fêmea solitária, também não tinha a menor chance de namoro, de um afago por outro de sua espécie. Pelo contrário: diariamente enfrentava o assédio de crianças e adultos, alguns lhe exigindo performances incompatíveis, a troco de cutucadas quase sádicas.

Foto: Reprodução/JC Online


Tinha na minha cabeça o sentimento de que estava testemunhando um dos últimos indivíduos da espécie, quem sabe já inviabilizada no ambiente natural. Isso porque eu sabia da sua vulnerabilidade à caça por pescadores, da redução de estoques do seu alimento nas praias rasas e muito visitadas, dos riscos de acidentes com hélices de barcos e da crescente poluição em seu habitat estuarino.

Estava ali um dos poucos representantes do manati, do peixe-boi marinho: preso, isolado, sem companhia para procriar e esperando a morte chegar, levando consigo segredos da evolução em 50 milhões de anos, de uma espécie reconhecidamente ameaçada de extinção.

Passaram-se anos para surgir, na esteira das iniciativas mundiais de salvação de espécies em perigo, o Projeto Peixe-Boi, com respaldo do Ibama. A proposta era acolher os animais à deriva, encalhados, acidentados ou maltratados em seu ambiente, reabilitá-los, estudar seu comportamento, obter reproduções assistidas e reintroduzir indivíduos em áreas naturais com melhor potencial de recebê-los. Quem sabe, a espécie seria salva!

Já como diretor de Recursos Naturais da CPRH, pude contribuir para a seção oficial pelo Governo de Pernambuco da área de camping mantida na Ilha de Itamaracá pela Empetur, que passou a ser utilizada como estrutura básica e inicial para implantação do então Centro Peixe-Boi, depois chamado Centro Mamíferos Aquáticos (CMA), ligado ao Instituto Chico Mendes, do Governo Federal. Dava-se ali um passo importantíssimo para a consolidação desse esforço de resgate de uma espécie, querida no imaginário da sociedade e contraditoriamente violentada na sua relação direta ou indireta com os próprios humanos.

Projeto Peixe-Boi nasceu há trinta anos

Mas e Xica? Ela faria parte desse novo cenário ou seria descartada como não enquadrável nos parâmetros da estratégia de conservação? Felizmente, em operação histórica, o animal foi levado para a nova residência, em Itamaracá. Pelo menos teria mais espaço e segurança, melhorando sua qualidade de vida, mesmo que talvez não mais contribuísse para a salvação genética do seu grupo.

Passados 30 anos da criação do projeto, qual o resultado desse esforço coletivo? No ambiente natural, a caça praticamente não mais ocorre com os peixes-bois marinhos e a população do bicho parece ter crescido, pelo menos de Alagoas ao Piauí. A partir das bases em terra, foram resgatados cerca de 80 animais, reintroduzidos 23 e nascidos nove filhotes em cativeiro. Em vida livre, pelo menos uma fêmea reintroduzida procriou, em águas de uma Unidade de Conservação no Litoral sul de Pernambuco.

Além disso, milhares de crianças experimentaram o sentido de maravilha ao vivenciarem momentos inesquecíveis e formadores de suas consciências ambientais, pertinho dos peixes-bois nos oceanários do Projeto. Enquanto isso, centenas de adultos experimentaram o prazer de trabalhar pela causa de sua preservação, obtendo inclusive trabalho e renda.

Isso tudo foi possível graças aos 20 anos de integração do CMA com a Fundação Mamíferos Aquáticos. A parceria evidencia a importância estratégica do terceiro setor em ações de interesse público, em que iniciativas sob responsabilidade do governo podem ser desenvolvidas por organizações não-governamentais, por não serem atribuições exclusivas de Estado. Nesse caso, a contribuição se dá pela facilidade de captar e gerir recursos, contratar pessoal, pesquisar, executar ações técnicas e formular propostas – não necessariamente conformadas com os limites de um órgão de governo -, além de incorporar mais facilmente o caráter acadêmico e de mobilização social.

Mas recentes desencontros evidenciados pelas duas instituições dão conta de que a gestão compartilhada não é simples, levando riscos à própria proposta original. Exige a compreensão de papéis, potenciais e limites de ambas as partes, para que a resultante seja positiva. Talvez o maior desafio seja ter claro que a ONG não é um acessório do governo, uma cumpridora de metas contratadas, mas uma protagonista de mesmo nível, formuladora e executora de uma gestão compartilhada, sem ser mero coadjuvante. É um desafio, mas, quando se consegue suplantá-lo, ganha a causa sobre a qual ambos se propuseram a abraçar solidariamente.   

Por fim, e Xica? Continua viva, nadando, namorando e procriando. Aliás, gerou o primeiro rebento de peixe-boi em cativeiro da América Latina. Por meio do seu filhote, introduzido no habitat natural, Xica povoa o mar com seus gens ancestrais, dando uma contribuição silenciosa para que o planeta não fique mais pobre em biodiversidade e oportunizando ao homem a chance de não ser algoz de mais uma espécie.

Cabe agora aos seres humanos e suas instituições aprenderem a lição da integração e continuarem fazendo a sua parte. Xica já fez a sua.

Fonte: JC Online

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