Enquanto todos os olhos se voltam para as discussões da COP30, em Belém, a cerca de 700 quilômetros dali, no estado vizinho do Maranhão, um dos maiores refúgios de felinos do Brasil pede socorro. A ameaça vem na forma de um projeto de lei que redefine os limites do Parque Estadual do Mirador e exclui do desenho da área protegida porções preservadas de Cerrado, essenciais para a sobrevivência das espécies nativas. Em especial do ameaçado gato-do-mato, que pode perder sua única população viável no longo prazo com as alterações.
À primeira vista, o PL nº 280/2024, do deputado estadual Eric Costa (PSD-MA) pode parecer inofensivo: “Georreferencia o Parque Estadual do Mirador e dá outras providências”, com o objetivo de dar limites “precisos” à unidade de conservação estadual criada em 1980. Na prática, porém, a proposta altera o desenho do parque e retira das fronteiras de proteção legal porções de Cerrado nativo e preservado; e para compensar em números, estende a unidade de conservação (UC) sobre áreas degradadas onde predomina a agropecuária; comprometendo os objetivos da sua criação de proteger a biodiversidade e assegurar a segurança hídrica da região.
De acordo a manifestação técnica, que se posicionou desfavorável à proposta, as inclusões abrangem em sua maior parte áreas com diversos usos agropecuários, o que geraria novos conflitos e aumentaria o passivo de regularização fundiária do parque, assim como a necessidade de ações de recuperação de áreas degradadas.
“Já as exclusões a leste, norte e noroeste incidem sobre áreas com presença significativa de vegetação nativa de Cerrado”, aponta a manifestação e incluem a perda de uma base de apoio às ações de fiscalização e combate à incêndios no Mirador.
A redefinição de limites irá comprometer nascentes, rios e toda capacidade de recarga hídrica da região, e têm potencial impacto ainda em toda a rica biodiversidade encontrada no Mirador. Em especial sob o gato-do-mato (Leopardus tigrinus), felino ameaçado de extinção que ocorre desde a América Central até a Argentina, e que tem no Mirador a sua única população viável em longo prazo no mundo dentro de uma área protegida.
“O parque é uma área-chave para conservação dessa espécie, não só a nível de Brasil, mas a nível mundial”, ressalta Tadeu Gomes, coordenador do Laboratório de Conservação e Ecologia da Vida Silvestre do Departamento de Ecologia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Pesquisador responsável pela análise que determinou a viabilidade da população de gatos-do-mato no parque estadual, Tadeu alerta que os novos limites propostos comprometeriam a segurança dos felinos em Mirador.
“No desenho atual, se nós conseguirmos controlar a transmissão de doenças em um nível baixo, essa população é viável mesmo em regime de isolamento. Ou seja, o Parque Estadual do Mirador pode funcionar como uma apólice de seguro contra a extinção dessa espécie, mesmo que o parque fique completamente isolado, o que não está muito longe de acontecer, diga-se de passagem. Com essa alteração de limites, porém, eu rodei novamente as análises de viabilidade e o parque, nesse novo desenho, se tornaria inviável para manter uma população de gato-do-mato no longo prazo”, destaca o biólogo, que é também coordenador do Tiger Cats Conservation Initiative.
Esse refúgio maranhense para o felino fez do gato-do-mato espécie-símbolo da conservação da biodiversidade no estado
O gato-do-mato não é o único felino encontrado no Mirador. Ao todo, são sete espécies, número recorde entre UCs brasileiras. Por lá andam também a onça-pintada (Panthera onca), onça-parda (Puma concolor), jaguatirica (Leopardus pardalis), gato-mourisco (Herpailurus yagouaroundi), gato-maracajá (Leopardus wiedii) e o gato-palheiro (Leopardus braccatus).
“Nenhuma outra unidade de conservação no Brasil tem mais do que sete espécies de felinos. O parque é um hotspot para felinos nas Américas e para carnívoros também”, completa o pesquisador da UEMA, que integra a equipe do Pró-Carnívoros. Ao todo, 16 espécies de carnívoros são encontradas no parque estadual.
O pesquisador destaca ainda a situação do gato-palheiro que tem no Mirador, um dos seus mais importantes refúgios, ao lado do Parque Nacional das Emas, em Goiás, e do Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais. “E é uma população de maioria de indivíduos melânicos [com concentração de pigmentação preta], por um motivo que ainda não sabemos explicar”.
Os pesquisadores da UEMA também publicaram uma manifestação contrária ao projeto de lei, na qual traduzem em números a biodiversidade do Mirador. Destacam-se: 70 espécies de mamíferos, sendo 17 ameaçadas de extinção; 302 espécies de aves já registradas; 20 de cobras e lagartos; 62 anfíbios e 79 de peixes. “Além de mais de 100 novas espécies de insetos para a ciência, um altíssimo nível de endemismo”, ou seja, que existem apenas no parque.
“Sob a ótica técnica e científica ambiental, a proposta de alteração dos limites do Parque Estadual de Mirador apresentada no Projeto de Lei 280/2024 revela-se extremamente prejudicial à conservação da biodiversidade do Maranhão”, com “impactos negativos significativos sobre a biodiversidade em geral, aos serviços ecossistêmicos e à integridade da rede hídrica local”, alertam os pesquisadores da UEMA, que pedem pelo arquivamento do PL.
Localizado no sudeste do Maranhão, o parque abrange os municípios de Formosa da Serra Negra, Fernando Falcão e Mirador, e resguarda um importante remanescente de Cerrado no estado. O apetite de fazendeiros pelas terras da UC estão entre as principais ameaças ao Mirador, que enfrenta ainda a caça ilegal.
Os técnicos da SEMA-MA lembram ainda que a desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só podem ser feitas mediante justificativa técnica-científica, lei específica e consulta pública. “Diante da inexistência de justificativa técnico-científica, considera-se frágil e intempestiva a proposta do PL”, afirma o texto.
Uma audiência para discutir a preservação do Parque Estadual do Mirador (e consequentemente o PL nº 280/2024) está prevista para o dia 21 de novembro, no município de Mirador, organizada pelo Ministério Público Estadual.
Fonte: O Eco