No litoral norte da Bahia, a preguiça-de-coleira-do-nordeste sofre com a expansão urbana sobre a Mata Atlântica. Com menos vegetação natural para viver, muitas morrem ao tentar atravessar as redes elétricas. Confinada a um fragmento florestal, essa população é considerada uma das mais ameaçadas do país.
A grande maioria das preguiças morre em transformadores, relata Luciana Veríssimo, bióloga e coordenadora do Conecta-Vidas, projeto que monitora a espécie na Floresta do Aruá, vizinha à Reserva de Sapiranga. “Algumas explodem, perdem patas e, mesmo quando sobrevivem, acabam morrendo de fome”.
Conforme Gastón Giné, da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), parceira das ações para conservação desses simpáticos mamíferos na região da Praia do Forte, ao menos 18 deles perderam a vida nos últimos dois anos, incluindo fêmeas grávidas e filhotes.
Contudo, o número de vítimas pode ser bem maior. “A eletrocussão, antes considerada pouco significativa, hoje rivaliza com atropelamentos e ataques de cães”, aponta o professor, que pesquisa a espécie desde 2010 e acompanha seus movimentos com drones e GPS – esses carregados em “mochilinhas” pelos animais.
Para Luciana Veríssimo, isso agrava a situação das estimadas 3 mil preguiças no litoral norte baiano. “É um número bem abaixo do mínimo de 10 mil, considerado seguro para uma população da espécie”, ressalta.
Compensação distante e ineficaz
Exclusiva da Mata Atlântica da Bahia e Sergipe e classificada como em Perigo de extinção, a preguiça-de-coleira Bradypus torquatus se alimenta de folhas. Cada fêmea gera em média um filhote por ano, que depende da mãe por cerca de 12 meses.
Esses traços tornam a recuperação dos grupos impactados lenta e muito sensível a perturbações, ainda mais quando somados o desmate e a fragmentação das matas, o isolamento genético e outras ameaças trazidas pela urbanização desenfreada.
Essa é a maior ameaça às preguiças e outras espécies no litoral norte da Bahia, como o ouriço-preto. Desde os anos 1980, o turismo e a valorização das terras impulsionam construções, que, mesmo dentro de uma área de proteção ambiental, podem avançar sobre florestas, restingas e manguezais.
Mas se as pressões sobre os ambientes naturais da região já eram grandes, ganharam força desde a pandemia de Covid-19, reconhecida pelas Nações Unidas de janeiro de 2020 a maio de 2023. “Esse crescimento imobiliário absurdo acelerou o impacto sobre os animais”, descreve Luciana Veríssimo.
Além disso, muitos empreendimentos cumprem compensações ambientais em áreas distantes, de menor custo, sem benefícios diretos à fauna local, reclama a bióloga. “Compensar em outro lugar não repõe os serviços ecológicos e a conservação perdidos aqui”.
Essa distorção nas compensações reforça a urgência de soluções criadas e aplicadas na própria região afetada, para evitar novas mortes e reduzir os prejuízos imediatos aos animais silvestres.
Sem preguiça de pôr a mão na massa
Enquanto a brecha legal para contrabalançar danos ambientais longe das áreas prejudicadas se mantém, o Conecta-Vidas e parceiros reduzem mortes com medidas como instalar travessias de cordas grossas. A solução simples e de menor custo já foi usada por seis espécies distintas, incluindo preguiças, cuícas e ouriços-pretos.
Ao mesmo tempo, entidades como a costarriquenha Sloth Conservation Foundation (Fundação de Conservação das Preguiças) defendem que as redes elétricas sejam enterradas para evitar de vez os choques mortais. Embora tal solução seja cara e dependa de planejamento integrado à urbanização, há alternativas mais viáveis a curto prazo, como isolar fios, postes e transformadores existentes e incluir essa proteção na expansão da rede elétrica.
“É possível construir de forma sustentável e transformar a floresta em fonte de renda, com turismo e valorização dos empreendimentos que convivem com espécies ameaçadas”, defende Luciana Veríssimo, também fundadora da Aruá Observação de Vida Silvestre, que já recebeu turistas de 34 países.
Tamanha procura não acontece por acaso. Naquela região, a preguiça-de-coleira nordestina é tida como espécie-bandeira para impulsionar o turismo, gerar renda de forma sustentável e proteger a biodiversidade, o que demanda mais ações conjuntas entre a sociedade civil e o poder público.
Atento a essas possibilidades, o resort Tívoli apoia a proteção de preguiças e de outras espécies terrestres e marinhas na Praia do Forte. Sua fiação é isolada, transformadores estão protegidos, a iluminação noturna é indireta e a Mata Atlântica está de pé em até 70% do empreendimento.
Outras medidas adotadas são a comunicação direta com o projeto Conecta-vidas e o treinamento de funcionários para lidar com o avistamento ou o resgate de animais silvestres. Algo estratégico diante de episódios raros como o nascimento de uma preguiça no próprio resort, em julho.
“Isso tudo compõem um portfólio ambiental que também serve como atração e fidelização turística”, avalia o diretor-geral do hotel, João Corte Real. “Hóspedes frequentemente retornam para vivenciar a biodiversidade local”.
O Tívoli é parte da rede global Minor, com hotéis em quase 60 países. Suas ações de conservação na Praia do Forte estão alinhadas a outras do grupo, envolvendo elefantes e tartarugas na Tailândia e Sri Lanka, corais e peixes nas ilhas Maldivas.
Responsabilidades são públicas e privadas
Além de pesquisadores e ongs, o Ministério Público da Bahia acompanha o problema desde 2023, quando recebeu as primeiras denúncias do Conecta-Vidas sobre as mortes de preguiças e outras espécies silvestres.
Em julho, o promotor de justiça Thomas Bryann Nascimento deu 30 dias para que a Neoenergia Coelba apresente um mapa da rede elétrica e cronograma de medidas protetoras, incluindo isolar cabos e transformadores, fazer podas preventivas e treinar equipes para lidar com a fauna nativa.
Ele também pediu ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), vinculado à Secretaria do Meio Ambiente da Bahia, que inclua o risco às preguiças nos licenciamentos e que suspenda novas autorizações de redes elétricas até que haja mitigação mínima dos choques.
Conforme Nascimento, mudar aquela infraestrutura elétrica exige a construção de soluções flexíveis e adequadas às especificidades da região. “Temos que mitigar e compensar os danos já sofridos, inclusive apoiando pesquisas e iniciativas de ONGs”, afirma o promotor.
Consultado por ((o))eco, o Inema informou ter adotado medidas imediatas após a eletrocussão de uma preguiça, em julho. A instituição afirmou que o caso está em análise técnica e conta com apoio da UFBA para resgate e realização de exames no corpo do animal.
O órgão acrescentou que estão suspensas as emissões de novas licenças ou autorizações para desmate e implantação de linhas de distribuição na região “até a apresentação de alternativas que evitem novos acidentes, incluindo medidas mitigatórias e compensatórias”.
Após a publicação da reportagem, a Neoenergia Coelba reconheceu em nota que a expansão imobiliária e o crescimento urbano desordenado afetaram o comportamento dos animais no litoral baiano, “que precisaram se deslocar para outros ambientes visando à subsistência, quando podem acidentalmente acessar a rede elétrica”.
A companhia disse que, para resguardá-los, realiza ações como proteger o sistema elétrico na Reserva do Aruá, “prevenindo choques em caso de contato dos animais com a rede”, e mantém tratativas com o Ministério Público da Bahia para buscar uma solução técnica que garanta a preservação das preguiças-de-coleira.
Por fim, a Neoenergia Coelba garante que atua com responsabilidade socioambiental, promovendo a convivência segura da rede de distribuição com a fauna e flora nas diversas regiões da Bahia. “A construção e manutenção da rede elétrica são reguladas e seguem normas técnicas que permitem conciliar a necessidade da população com a preservação do meio ambiente”.
É preciso ampliar a proteção legal
Enquanto do governo baiano e da empresa de energia são cobrados planos e ações urgentes para salvar os animais silvestres, ambientalistas pedem medidas mais amplas, como mais áreas protegidas próximas aos pontos críticos de eletrocussão.
Uma proposta é criar uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), o que ajudaria a compensar as mortes de animais e ampliará a proteção das florestas com preguiças no litoral norte da Bahia. Hoje, só 0,02% delas estão dentro de unidades de conservação.
Enquanto negociações e estudos avançam, as perdas de animais silvestres continuam. Sua sobrevivência depende cada vez mais de boas escolhas políticas, de investimentos adequados e do equilíbrio entre conservação e desenvolvimento urbano.
Fonte: O Eco