Mais um ano começa e, com ele, novas surpresas e ameaças para a Amazônia, seja pelo desmatamento que vem a galope com atividades criminosas, como o garimpo ilegal e a transformação de floresta em pasto, seja pelos incêndios devastadores que têm se intensificado, atingindo nível recorde em 2024.
Embora a retirada de vegetação nativa tenha caído em mais de 30% no último ano, os reincidentes abusos históricos contra a natureza afetaram um dos principais serviços prestados pela floresta: o de equilíbrio do clima. Isso porque, em algumas áreas, a Amazônia passou a emitir mais dióxido de carbono (CO2), vilão do aquecimento global, do que absorvê-lo, dado que sua capacidade de agir como sumidouro está ameaçada.
Em entrevista ao Um Só Planeta feita no mês passado por ocasião do evento TEDX Amazônia, a cientista climática e coordenadora do LaGEE (Laboratório de Gases de Efeito Estufa), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Luciana Gatti, fez um alerta urgente sobre a crise ambiental no Brasil, defendendo a implementação de um “plano de sobrevivência” para reverter as perdas provocadas pelo desmatamento e degradação dos ecossistemas naturais.
Na conversa, ela afirmou que o Brasil enfrenta uma crise sem precedentes, destacando que, se o ritmo de destruição continuar, o colapso ambiental será inevitável. “Precisamos de um plano de sobrevivência. O Brasil não pode continuar com a destruição acelerada da Amazônia e de outros biomas. O futuro do país e do planeta está em jogo”.
A pesquisadora do INPE, que há anos acompanha o desmatamento e as mudanças climáticas, apontou a pecuária e a expansão das plantações de soja como as principais causas da devastação das florestas brasileiras. Ela ressaltou que a pecuária é responsável por cerca de 44% do rebanho bovino do Brasil localizado na Amazônia, gerando desmatamento para a abertura de pastos, o que tem um impacto direto no aumento da emissão de gases de efeito estufa e na destruição da biodiversidade.
“A maior parte da área desmatada no Brasil é para a criação de gado, e esse modelo é completamente insustentável. Não podemos continuar com essa lógica de exportação de commodities sem considerar as consequências ambientais”, afirmou. Segundo ela, as áreas historicamente mais desmatadas têm um clima muito mais estressante para a floresta, com menos chuva e temperaturas mais altas. Só no sudeste da Amazônia, em 40 anos, as temperaturas subiram dois graus e meio.
Para a cientista, o modelo de desenvolvimento baseado na exploração de recursos naturais não renováveis está condenando o Brasil e o planeta a um futuro incerto. “O Brasil tem um potencial imenso para adotar alternativas mais sustentáveis, como o ecoturismo. Países como a Costa Rica têm mostrado que é possível gerar riqueza e emprego sem destruir a natureza”, explicou.
Além disso, Gatti chamou atenção para a falta de políticas públicas contínuas em prol da floresta e de uma maior conscientização da sociedade sobre os impactos da destruição ambiental. “A população precisa entender que cada árvore, cada pedaço de floresta, é um elemento essencial para a regulação do clima. Não podemos continuar ignorando essa realidade”, alertou.
Amazônia como emissora de carbono
Uma das principais contribuições de Luciana Gatti para a ciência ambiental nos últimos anos foi a pesquisa que ela liderou, demonstrando que a Amazônia, que antes funcionava como um grande sumidouro de carbono, agora se transformou em uma fonte de emissão de gases de efeito estufa. Estudos feitos por Gatti e sua equipe mostraram que o desmatamento e a degradação das florestas estão liberando grandes quantidades de carbono na atmosfera, contribuindo significativamente para o aquecimento global. “A Amazônia está passando de uma grande guardiã do clima para um emissor de carbono, o que agrava ainda mais as mudanças climáticas”, disse.
Essa transformação da Amazônia de sumidouro para emissora de carbono é uma das razões pelas quais a situação do Brasil é ainda mais crítica. Sem uma ação imediata para interromper o desmatamento e restaurar as áreas perdidas (“a níveis acima do que é exigido pelo Código Florestal”, ressalta a cientista), o Brasil pode perder a capacidade de absorver o carbono necessário para atenuar a emergência climática.
“Nosso plano de sobrevivência é plantar, plantar, plantar, que é a árvore que vai abaixar a temperatura”, ressaltou ao subir ao palco do Palácio Rio Negro na terceira edição do TEDxAmazônia, em Manaus, onde também defendeu, como medida para mitigar efeitos ambientais e a pressão sobre a floresta, a redução da pecuária brasileira.
Ameaças pessoais e desafios enfrentados
Luciana Gatti, como muitas outras vozes científicas ou não que se opõem ao atual modelo de exploração do meio ambiente, tem enfrentado não apenas críticas acadêmicas, em geral direcionadas ao seu ímpeto “ativista”, mas também ameaças pessoais. A pesquisadora revelou que, ao longo dos anos, recebeu diversas ameaças de grupos ligados à indústria madeireira e ao agronegócio. “É uma pressão constante, mas isso não vai me calar. Estamos falando de um bem maior, que é o futuro de todos. Não podemos deixar que interesses econômicos destruam o que nos sustenta”, afirmou Gatti ao Um Só Planeta.
Ela também relatou o crescente risco de violência contra ambientalistas e cientistas no Brasil, onde a polarização política tem alimentado um clima de hostilidade para aqueles que defendem políticas públicas voltadas para a preservação ambiental. “Infelizmente, a questão ambiental no Brasil virou um campo de batalha ideológico. Mas o que está em jogo é a sobrevivência do nosso país e do planeta. Precisamos agir agora, com coragem e união”, cravou.
Plano de sobrevivência: um caminho possível
A pesquisadora do INPE propôs um plano de sobrevivência que deve ser adotado imediatamente para conter o desmatamento e restaurar as áreas degradadas. Para ela, a implementação de políticas públicas coordenadas, a fiscalização efetiva das leis ambientais e o apoio a práticas sustentáveis são essenciais para impedir o colapso ambiental.
“Se a gente continuar no ritmo atual de destruição, não vamos ter o que salvar até 2030. O desmatamento precisa ser reduzido drasticamente, e as áreas já desmatadas precisam ser recuperadas”, afirmou. Gatti também enfatizou a importância de repensar o modelo agrícola do Brasil, com maior foco em agroecologia e outras práticas sustentáveis.
Apesar dos desafios, Gatti acredita que ainda há tempo para reverter a situação, desde que o Brasil e o mundo adotem ações vigorosas e coordenadas. “A crise ambiental é grave, mas se agirmos agora, podemos evitar os piores cenários. O futuro do Brasil e do planeta depende das escolhas que fizermos agora”, concluiu a cientista.
Com o desmatamento avançando a um ritmo alarmante, o chamado da cientista é claro: a sociedade, as autoridades e os setores econômicos precisam unir forças para garantir que a Amazônia e outros biomas essenciais para a vida na Terra sejam preservados, para que possamos, de fato, ter um futuro sustentável. Ou, melhor, para que tenhamos um futuro.
Fonte: Um Só Planeta