Foto: Arquivo pessoal
O rio que banhava a aldeia onde cresceu Moangathu Jiahui costumava estar sempre cheio e com abundância de peixes. As árvores no entorno forneciam os frutos necessários para a subsistência das famílias da comunidade. Ao longo da vida, ele aprendeu que, para viver em comunhão com a floresta e preservá-la, era necessário não retirar da natureza de forma desordenada. Os ensinamentos repassados por ancestrais seguem vivos na memória do líder indígena de 45 anos até os dias atuais.
“Não retiramos da natureza de forma irresponsável. Nós cultivamos mais ainda para que ela permaneça em pé, para que tenhamos um oxigênio puro para respirar, não só para nós, que vivemos na floresta, mas para toda a sociedade”, analisou Moangathu Jiahui em entrevista ao Terra.
O líder indígena, que é coordenador executivo da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (Opiam), relata que a mudança do clima fez com que a rotina das comunidades indígenas, especialmente as do sul do Amazonas, se transformasse com o passar dos anos. “Na verdade, em termos de populações indígenas, estamos sofrendo em todo o País. Estamos com muita dificuldade na caça e pesca. A mudança do clima fez com que nosso ecossistema mudasse e, com isso, a própria estação do ano mudou”, explica.
Na Amazônia, há apenas duas estações no ano: verão, período mais seco e ensolarado que vai de julho a dezembro, e inverno, período de chuvas intensas que vai de dezembro a maio. Agora, os rios têm secado com mais frequência durante o calor, enquanto nos outros seis meses há transbordamentos de água pelo excesso de chuvas. Esse desmantelamento do meio ambiente faz com que, ao longo do ano, os alimentos providos pela natureza se tornem cada vez mais escassos.
“Quando secam os rios, os peixes morrem, porque aquece a água. A temperatura da água sobe e não tem oxigênio suficiente dentro do rio para que eles respirem e consigam sobreviver. Já nas cheias, o tempo da chuva mudou. Nessa época do ano [outubro], não costuma chover, porque já estamos no verão. A forma como a mudança climática está afetando a gente é muito drástica”, lamenta.
Acompanhadas das mudanças climáticas, há também a questão das derrubadas irregulares de floresta. Com o desmatamento ilegal, ocorre o assoreamento dos rios, ou seja, o acúmulo de resíduos, como terra, pedras e árvores, no fundo do curso de água. O acúmulo de dejetos ocasiona o desaparecimento desses rios.
“A gente é prejudicado de todos os lados. A nossa comida some, os peixes somem, os animais somem. Aí se torna uma escassez de alimento pra gente” – Moangathu Jiahui
As comunidades do sul do Amazonas, onde o líder mora, têm feito um caminho inverso àquele realizado por povos originários de outros Estados brasileiros como o Acre, por exemplo. Ao invés de se aproximar dos centros urbanos para obter recursos e alimentos com maior facilidade, as populações indígenas têm encontrado refúgio em regiões de mata fechada.
“Vamos para onde tem floresta em pé. Queremos viver em bem-estar com a natureza. São lugares onde a gente consegue viver em harmonia e onde conseguimos preparar bem a terra, para conseguir produzir e proteger os rios. Então, ao invés de ficarmos próximos da cidade, a gente vai para onde tem mais árvores e rios com abundância de peixes”, afirma.
‘Somos os guardiões da floresta’
Moangathu estará presente na Conferência das Partes (COP30) em novembro, em Belém (PA), como representante do Núcleo de Mudanças Climáticas do sul do Amazonas e como representante da Opiam. Apesar de esperançoso, ele revela que não acredita que o encontro no Brasil trará tantos resultados práticos aos povos originários de sua região.
“As pautas da COP precisam se aprofundar mais na realidade dos indígenas. Somos os guardiões da floresta, somos a mãe terra. Almejamos a conservação ambiental, a defesa da humanidade, da fauna e da flora” –Moangathu Jiahui
Na opinião do indígena, entre as principais questões que precisam ser debatidas estão o incremento de incentivos ambientais e o fornecimento de recursos de conservação ambiental para que os povos originários consigam proteger a floresta cada vez mais.
“Nós sempre fizemos a conservação da floresta, mas a gente precisa que a sociedade entenda que, sem o meio ambiente, não teremos gerações futuras para ninguém, principalmente no Brasil, independente da região. Existem projetos e associações, que fornecem algum tipo de apoio para essa conservação, mas nós precisamos de mais recursos”, complementa.
Demarcação de terras e falta de apoio financeiro
As preocupações de Moangathu Jiahui dialogam com os receios do advogado Ivo Cípio Aureliano, do povo Makushi, de Roraima. Ele milita na causa indígena há pelo menos 15 anos, sendo os últimos 7 anos como advogado, e integra o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Com um longo currículo de atuação em prol dos direitos dos povos originários, Ivo destaca que a vulnerabilidade dos povos indígenas se dá, principalmente, pela falta de demarcação territorial e do reconhecimento formal das terras indígenas.
“Os ditos projetos de desenvolvimento econômico do País ameaçam as terras indígenas e a própria existência física e cultural dos povos porque impõe aos territórios indígenas a visão desenvolvimentista de que esse é o progresso de que o país está buscando”, declara.
De acordo com o advogado, as mudanças climáticas também são uma demanda urgente dos povos indígenas. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Aib) apresentaram uma proposta de inclusão como parte das NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas) do Brasil.
As NDCs são os compromissos do País com o Acordo de Paris, adotado em 2015 durante a COP21, que visam reduzir as emissões de gases de efeito estufa, com a meta de diminuir as emissões líquidas entre 59% e 67% até 2035. “A demarcação das terras indígenas e proteção como pilar de mitigação climática são demandas que precisam chegar à COP. É preciso que o País acolha, aceite e incorpore as propostas dos povos originários e as apresentem como parte de uma estratégia nacional”, explica.
Para Ivo, é preciso garantir que recursos financeiros originados de fundos climáticos cheguem às comunidades indígenas que necessitam, tendo em vista que apenas 1% dos financiamentos chegam para essas populações.
“Grandes fundos climáticos como Fundo Verde para o Clima e Fundo de Perdas e Danos não são acessados pelos povos indígenas, sendo que as terras indígenas, cientificamente comprovadas, são importantes e essenciais para a preservação da biodiversidade. E ainda assim essas populações não conseguem receber esses financiamentos. Isso será uma pauta bem forte dos povos na COP30”, diz.
‘Vozes indígenas são abafadas’
Segundo o advogado, há relatos de que quem capta a maior parte dos investimentos são intermediários que captam recursos, muitas vezes em nome dos povos indígenas, com a justificativa de que estão implementando projetos dentro desses territórios.
“Isso acaba abafando as vozes indígenas, que nem conseguem acessar diretamente esses fundos. Não existe uma governança que possa, de fato, olhar se o recurso está chegando na ponta. Esses grandes fundos climáticos precisam ter uma governança própria para a questão indígena, é um desafio. O recurso acaba indo para outras áreas, instituição e entidades que não destinam o dinheiro aos povos originários”, pontua.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) é um dos mais antigos do Brasil, representando povos como Wapixana, Waiwai, Içanapé e Yanomami, por exemplo. A organização, que agrega todos os povos originários de Roraima, tem atuado para criar estratégias próprias em prol dessas comunidades, tais como, plano de gestão territorial e ambiental, protocolos de consulta e planos de vida.
Mais recentemente, o CIR elaborou um Plano Indígena de Adaptação às Mudanças Climáticas, uma iniciativa inédita que servirá de referência para outros países e que será lançada durante a COP30.
“Essa é uma estratégia dos povos indígenas para o enfrentamento das mudanças do clima. É uma reivindicação para que possamos assegurar direitos e garantir, de fato, a justiça climática para os povos climáticos. As mudanças climáticas são um problema geral, principalmente pelo desaparecimento de animais, especialmente peixes. Além disso, a terra também se torna infértil para a produção de alimentos, então é necessário que você agregue novas tecnologias para produzir alimentos”, completa.
O advogado argumenta que é preciso agregar o saber indígena, de trabalhar com a terra e produzir, com inovações da ciência. “Levando novas tecnologias para as aldeias, você consegue garantir que aquela terra possa continuar produzindo alimentos para aquele povo e que isso seja feito por meio de uma política pública. Esse desaparecimento de alimentos também faz parte dos impactos diretos das mudanças climáticas, que é uma reclamação unânime em todas as regiões aqui de Roraima”, afirma.
O Brasil apresentará durante a Conferência das Partes o The Tropical Forest Forever Facility (TFFF) como uma alternativa de moeda de troca com outras nações. A proposta é um fundo de investimento global criado pelo governo brasileiro para financiar a conservação de florestas tropicais, como a Amazônia. O Brasil foi o primeiro a investir no fundo, anunciado durante a Assembleia-Geral da ONU em Nova York. O País fez o aporte de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5,3 bilhões).
“Estamos com receio, no entanto, de que um debate sobre investimentos em transição energética possam gerar mais violência contra os povos indígenas, porque você colocaria em maior risco as terras desses povos. Isso impacta diretamente a Amazônia, onde a gente vê essa nova corrida. A gente chama de colonialismo verde, ou seja, em nome do progresso, onde você supostamente está fazendo desenvolvimento sustentável, mas continua violando direitos básicos dos povos indígenas e não busca, de fato, uma solução viável”, pontua.
‘Demarcar território é salvar o planeta’
Quando participou da criação da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, em 1992, a ativista ambiental Ivaneide Bandeira Cardozo, conhecida como Neidinha Suruí, acreditava que a pauta da demarcação territorial indígena seria solucionada em pouco tempo.
Mais de 30 anos depois, Neidinha segue ativa na luta pela defesa da floresta e dos territórios dos povos originários, especialmente do povo Uru-Eu-Wau-Wau, de Rondônia. A etnia, inclusive, teve sua luta retratada no documentário O Território, vencedor do Emmy em 2024, do qual a ativista também participou.
“Na época que a Kanindé foi criada, a gente era muito jovem e achava que ia salvar do mundo. A coisa boa de envelhecer é que você descobre que não pode salvar o mundo, mas que pode continuar tentando. Achávamos que em três anos a organização não seria mais necessária, mas, atualmente, trabalhamos pelos direitos de 21 povos”, conta.
A ativista defende os mesmos pontos destacados por Moangathu e por Ivo: a demarcação territorial dos povos indígenas e o acesso facilitado aos grandes fundos climáticos devem ser as principais pautas a serem discutidas durante a Conferência das Partes em Belém.
“A demarcação, a proteção, o financiamento e as ações de combate às emergências climáticas são os pontos principais. Muitas pessoas que moram dentro da Amazônia não sabem o que é a COP, porque ainda é uma discussão de um grupo muito pequeno e privilegiado. Alguns grupos têm feito essa discussão dentro dos territórios, para explicar o que é a ONU, o que são NDCs, para abrir esse espaço de debate entre os povos”, destaca.
De acordo com Neidinha, mesmo que a atuação do Ministério dos Povos Indígenas seja ativa em relação à defesa da floresta, é preciso continuar ouvindo os movimentos daqueles que vivem e cuidam diariamente do meio ambiente. Outra preocupação mencionada pela ativista é a transição energética, que também será um assunto a ser discutido durante a COP30 pelos líderes mundiais.
“Muito se fala sobre a transição energética limpa, mas o que seria exatamente isso? Costumavam vender as hidrelétricas com esse mesmo discurso, e não foi o que aconteceu, nunca foi uma energia limpa. A plataforma de petróleo na foz do Amazonas ainda está em discussão, como isso geraria uma energia limpa? O movimento, com certeza, deve levar essa pauta para a conferência, porque ela pode prejudicar as populações indígenas”, ressalta.
As mudanças climáticas entre os povos originários de Rondônia são as mesmas observadas pelas populações de outros Estados da Amazônia. De acordo com Neidinha, em 1998, o povo Paiter Suruí já observava que algo diferente estava acontecendo com o clima, mas, naquela época, não se falava sobre emergência climática ou o que poderia vir a acontecer caso o meio ambiente fosse prejudicado com a intervenção da urbanização.
“Em 1998, tivemos a primeira sensação de que tudo estava mudando por conta de uma frutinha que estava diminuindo de tamanho. Além disso, ela começou a brotar em uma época diferente. A situação hoje é ainda mais grave. A gente está o tempo todo se adaptando a um novo clima, a uma temperatura mais alta, que causa danos à saúde. E aí você começa a perceber que a situação está piorando. Muito se fala que o desmatamento diminuiu, mas por que não percebemos isso no dia a dia?”, questiona.
Para Neidinha Suruí, o recado aos líderes mundiais que estarão presentes na COP30 é claro: ouvir os povos da floresta e ajudá-los no acesso aos grandes fundos climáticos.
“A vida da floresta e a nossa vida estão interligadas. Eles precisam ter reais compromissos com a sustentabilidade do planeta. Precisam nos ajudar na luta para a proteção dos territórios e da floresta, no Brasil e em qualquer parte do mundo. A COP não é só para o Brasil, é para o mundo inteiro. É preciso reforçar, também, o compromisso com o financiamento para combater as emergências climáticas. É uma das formas de salvar o ser humano. Demarcar território é salvar a Amazônia e o planeta”, conclui.
Fonte: Terra