Priscila Tessuto é Arte educadora e Educadora Social, poetisa livre e ativista pelos direitos animais e humanos, atriz com especialização em Psicopedagogia e licenciando-se em Ciências Sociais, atua de maneira independente em parceria com ONGs e Coletivos que acreditam e trabalham por transformações urgentes. Autora do blog pritessuto e co-autora da obra “Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais” (no prelo). Nessa entrevista concedida à ANDA ela relata como se deu sua entrada na causa animal, fala sobre Arte e faz algumas reflexões sociológicas sobre o movimento.
ANDA: Como foi seu contato com a causa animal? Seu processo até ser uma ativista vegana?
Tessuto: Com 15 anos, um livro sobre a cultura celta me levou a refletir sobre a indústria de exploração animal no segmento de alimentação. A descrição de como vacas, porcos e galinhas viviam e eram assassinados me ampliou o olhar para estes animais. Tornei-me ovolacto e segui em busca de mais informações sobre este processo e em 2006 conheci o VEDDAS, me aproximei e tornei-me uma ativista vegana, o que me levou a estudar sobre nutrição, meio ambiente, economia, cultura e diversos outros fatores cuja exploração animal influência, direta ou indiretamente. No VEDDAS Móvel, projeto que leva documentários sobre especismo e exploração animal às ruas, o diálogo com as pessoas abordadas e/ou impactadas, exigia embasamento em diversas perspectivas em nome dos Direitos Animais. Foi um processo essencialmente construtivo. Dois anos, dois anos e meio depois eu me desliguei da Organização e comecei meu trabalho independente com educação social e arte-educação, abordando a questão de forma intrínseca.
ANDA: A sra. atua no campo das artes, como vê a relação das artes com os direitos animais?
Tessuto: Sou arte-educadora por acreditar que a arte aproxima o sujeito de si mesmo, trabalhando com suas subjetividades e suas produções abstratas. Este processo nos leva à frente de uma realidade que passa a ser questionável, em relação ao nosso comportamento, nossos gostos, nossas ações… Nossa cultura, hoje mundializada, não nos permite muito tempo de reflexão, pelo contrário, ela acelera a urgência de informação e nos coloca num ritmo desumano de atuação, onde já não questionamos o que está fora da rotina que nos é exigida. As palavras são carregadas de conceitos prontos, de carga histórica, e reproduzimos com a mesma naturalidade que aceitamos a violência cotidiana, que atinge a todos. Palavras que dão o tom à piada machista, ao comentário racista, justificam o comportamento homofóbico, as escolhas especistas. A forma como nos relacionamos com as demais espécies está neste pacote pronto, que, penso eu, se a gente não se afasta para enxergar a barbárie, ela é aceita de maneira naturalizada. A criança que cresce comendo e vestindo animais, acredita que isso é natural, é normal. A criança que cresce com violência doméstica tende a ser um adulto que vai achar normal, relações violentas. Nós nos habituamos com a violência, de todas as formas! Bertold Brecht propôs aos espectadores de suas peças um distanciamento necessário para que se pudesse avaliar suas próprias condições de trabalho de forma crítica, impactando o sujeito com sua própria realidade. Quando os jovens que eu trabalho, associam os seus comportamentos para com os outros animais, é como se achássemos o interruptor… Cria-se uma consciência dos atos absurdos que o especismo nos leva, eles passam a se questionar sobre isso, levam questões para casa, mudam comportamentos, ampliam seus olhares. Eu acredito que a arte é um caminho seguro para este despertar.
ANDA: A sra também é do campo das Ciências Sociais. Existe um clichê nos livros didáticos de Sociologia para o ensino médio que é citar um trecho do primeiro volume d’O Capital, onde Marx diz que apesar da perfeição da teia da aranha (e que o homem nunca vai chegar tão perto daquela perfeição), pelo fato do homem usar a razão, de pensar antes de fazer o mais tosco banco, ele supera a aranha. O que a sra pensa sobre essa ideia?
Tessuto: Marx me ensinou que todo ser humano é fruto do sua época (risos). Ele desenvolveu toda sua obra com um olhar especifico para a realidade humana e o sistema socioeconômico vigente, e eu entendo que, ao que ele se refere neste exemplo, é o seu conceito de trabalho, sobre como o ser humano se transforma no desenvolvimento de um produto. É uma visão especista que se interessa pelo processo humano, e não pelos demais animais, uma ideia que limita a aranha à sua função natural apreciada pelo homem, e destaca a capacidade humana de construir algo antes idealizado. Partindo do mundo das ideias de Hegel, Marx responde à filosofia e estudos de sua época, apontando que a ideia não muda o ser humano, mas sim, sua prática. Não há, ou não havia, interesse da perspectiva da aranha sobre a idealização da teia. O ser humano observa que ela simplesmente a faz, e que atende a determinadas necessidades tidas como instinto! No mesmo capítulo ele usa o peixe como exemplo de “objeto de trabalho”, animais domesticados como “meios de trabalho” e ainda destaca a importância desta condição no início da civilização humana – um convite para refletir sobre a apropriação das demais espécies como recursos naturais e chegar ao especismo em sala de aula. Ele afirma os animais como produtos do trabalho humano! E completa o raciocínio afirmando que seu estudo é limitado ao homem e seu trabalho de um lado, e à natureza e seus materiais, de outro. Estes “materiais” inclui os animais!! Esta visão me permite analisar: 1. o especismo como fruto de um processo histórico, análise conforme Marx ensinou; a urgência de incluirmos este comportamento explorador do ser humano para com as demais espécies, sob a perspectiva dos explorados, perspectiva que o próprio Marx nos leva; e ainda, a origem do capital a partir da referência do autor sobre um texto de R. Torrens (1821) que aponta na primeira pedra arremessada contra um animal, a apropriação de um artigo para aquisição de outro, de uma vida… Especismo e capital se desenvolvendo juntos!? (meu sonho de tese). Se Engels coloca a mulher perante o homem como o proletário perante o burguês, numa luta de explorado versus explorador, hoje eu enxergo o mais explorado dos humanos como o maior explorador dos animais, e a alienação, pra mim, é o principal ingrediente! É um exercício de empatia, urgente!
ANDA: Em uma coletânea que será lançada em breve (Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais) a sra. utiliza justamente o conceito de “fetichismo de mercadoria” do Marx, em O Capital, pra discutir o status de propriedade dado secularmente aos animais não humanos. Como foi essa aplicação do conceito marxiano à causa animal?
Tessuto: No artigo o conceito surge ao questionar o veganismo enquanto movimento, ou consciência coletiva – na perspectiva de Durkheim. O que vejo é uma proposta que questionaria nosso consumo e os meios de produção em um movimento que se adaptou eou foi cooptado pelo capitalismo. Quando veganismo vira nicho de mercado, a proposta enfraquece, pois a luta está inserida no consumo humano, e não nos Direitos Animais. O fetichismo de mercadoria traz a ideia do encantamento do produto vegano, auxiliando relações sociais humanas, e distancia a possibilidade de um consumo critico, que questione de onde vem, como e por quem este produto foi feito até que nos chegue. A exploração animal, humana e não humana, não deixa de acontecer e o vegano tende a acomodar o enfrentamento nas escolhas de consumo. Mercadorias que se rotulam veganas permitem sonhos tranquilos aos consumidores veganos que “fazem o que pode” para não explorar os animais, mas nada que afete o conforto proposto pelo sistema capitalista. Há restos e partes de animais em nossa rotina, o tempo todo! Torna-se impossível ser 100% vegano no mundo de hoje. Não basta ler rótulos.
ANDA: Outro senso comum especista na Sociologia e na Antropologia é a ideia de que só o humano faz cultura. Ao que a sra atribuiria a dificuldade dos professores de Sociologia e Antropologia em aceitarem que muitas outras espécies também são seres culturais?
Tessuto: À ideia de superioridade evolutiva do ser humano, como se nossa capacidade de levantar prédio nos colocasse num patamar acima dos demais animais. Da mesma forma que Marx eleva o trabalho humano em relação aos dos outros animais, o processo cultural humano é tido como superior, ou único. É necessário a desconstrução da perspectiva antropocêntrica e levarmos em consideração nossa estrutura ideológica especista, nosso olhar preconceituoso e mercadológico em relação aos animais. É urgente provocar esta reflexão e incluirmos as demais espécies em nosso exercício empático e de alteridade. É possível enxergar relações de aprendizagem entre as demais espécies, reprodução de comportamentos, adaptação ao meio, produção de ferramentas… A cultura para a Antropologia pode ter uma perspectiva relacionada com o processo civilizatório e a produção de símbolos, identificada como um comportamento não natural ao ser humano. Nossa cultura tornou-se não natural ao cultivarmos necessidades inventadas, ao expropriar do outro o que não precisamos para viver; cultivamos uma vida artificial. E se considerarmos sua etimologia refere-se à colher, cultivar, cuidar, manter… Os demais animais não cultivam seus hábitos, comportamentos, conhecimentos? Não ensinam aos filhotes como caçar, voar, o que comer, onde dormir? Poxa…
ANDA: “Cultura” é uma temática importante nas Ciências Sociais, como a sra. vê o argumento especista dos defensores de rodeios, farras do boi, touradas, como patrimônios culturais?
Tessuto: Me soa tão assustador como se ouvisse alguém defendendo a escravidão, que também já foi “normal” e cultural. Em alguns países, legal! Tão cultivado que se colhe seus frutos amargos até hoje… Argumentos conservadores vêm sempre do opressor, e é ele quem dita as ideias de sua época, convencendo o oprimido de que sua situação está em perfeita harmonia social. Na historia humana, temos momentos de reações significativas de oprimidos em nome de seus direitos básicos, direito em ser humano! Me preocupa considerar que são os humanos que deverão se transformar para que as demais espécies possam gozar de seus direitos à vida, ao espaço, à água… Direito em ser, existir. Há movimentos sociais atuais que mostram a urgência de se ter o poder, repetem as segregações, e buscam o lugar do opressor quase de maneira inconsciente, pois está na ideologia, no comportamento cultivado em ser o melhor, chegar no topo… Oprimir! Voltando à questão, defensores deste comportamento violento se alimentam deste poder, e eu enxergo esta necessidade como sintoma de uma sociedade extremamente contaminada. Há aí a visão dos animais enquanto propriedade, mercadoria, objeto para uso humano, logo como patrimônios, bens, herança de um comportamento, de uma ideia.
ANDA: O veganismo é uma ideologia revolucionaria?
Tessuto: O veganismo poderia (e deveria) ser uma ideologia revolucionária se junto com ele, toda a concepção do modo de produção fosse questionada. A liberdade e a preservação dos direitos animais estão nas mãos humanas, e o ser humano é um bicho muito longe de si mesmo, muito maltratado ao longo da história. Não faz tempo tínhamos humanos sofrendo o mesmo nível de exploração que os animais não humanos sofrem até hoje, seja no trabalho expropriado, seja para entretenimento dos que gozavam do poder. Penso que quando se aceita o capitalismo se apropriando do movimento, ele perde seu caráter revolucionário. Aceitamos que há queijos vegetais, com aparência, cor e quiçá gosto do queijo a base de leite de vacas sem considerar em nada seu processo de fabricação. Onde houver humanos alienados, haverá exploração, pois o foco passa ser um só: ocupar o lugar do opressor. O veganismo começa a ser um movimento alienado, cuja visão é limitada e parcial… Por exemplo, abordando até o conceito de fetichismo novamente, hoje é possível ler na embalagem se uma mercadoria alimentícia é vegana ou não, isso nos parece suficiente. Não questionamos ao padeiro o uso de derivados animais na feitura do pão. Descobri padarias que usam leite em pó, banha de porco e sei lá mais o que para “dar um gostinho”. O que aponto aqui é que não devemos calar nosso ímpeto curioso sobre como as coisas chegam até nós, que a alienação ou o desdém do outro nos afeta, que a fome do outro nos afeta, que a dor, a necessidade, a ausência de vida e a violência a qual nos habituamos nos faz ausentes e violentos sem que queiramos ou percebamos. É necessário uma luta diária, interna, contra tudo que soa comum e normal nesta sociedade humana, de raiz especista, racista, sexista e opressora.
ANDA: Como a sra avalia a atual situação do movimento animalista no Brasil?
Tessuto: Tipo Glória: prefiro não opinar sobre isso! Hahahaha. Estou afastada do movimento, mas me assusta o que leio e ouço de pessoas que se dizem veganas. Senso comum não deveria ser para quem questiona uma exploração que afeta social, ambiental e economicamente toda a vida terrestre. Não aceito vegano opressor! O veganismo deveria tirar as pessoas do lugar, ser uma expulsão da zona de conforto, gerar curiosidade e resistência o tempo todo. Limitar o movimento na dieta ou no consumo não vai findar com exploração animal.