Dom e Helen estão em um novo relacionamento. A aproximação, iniciada em 2023, se deu aos poucos, com calma e paciência. Afinal, são ainda adolescentes. Em agosto, eles completaram três meses de vida livre, em namoro com a natureza, de onde nunca deveriam ter sido tirados. Dom e Helen são dois dos 20 tamanduás-bandeira que voltaram a viver no ambiente natural por meio do trabalho do TamanduASAS, projeto de conservação sediado em Uberlândia (MG) que reabilita e faz solturas monitoradas desses mamíferos comedores de formiga.
O tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) é uma espécie endêmica das Américas Central e Sul. No Brasil, sua ocorrência estende-se por diferentes biomas, mas é no Cerrado onde ele é mais comumente encontrado.
Apesar da ampla ocorrência – ou justamente por isso – não existem dados atualizados sobre sua população no Brasil, mas a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) considera a espécie como “Vulnerável à extinção”, com população “em declínio”.
Esta também é a classificação que o tamanduá-bandeira recebeu no Brasil, na última atualização da Lista Oficial da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção, publicada em 2022.
“Considerando a perda ocorrida e contínua [de vegetação nativa] do Cerrado, 49,1% nos últimos 50 anos, bioma que provavelmente abriga a maior fração da população da espécie, o avanço do arco do desmatamento no bioma amazônico e perda de 88% do bioma Mata Atlântica, infere-se que pelo menos 30% da população [de tamanduás-bandeira] foi perdida nos últimos 26 anos. Assim Myrmecophaga tridactyla foi considerada vulnerável (VU)”, diz trecho da Avaliação de Risco da espécie, feita pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).
Além do desmatamento, também entram na lista de pressões sobre a espécie os atropelamentos em estradas e rodovias, principalmente nos estados de Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, intoxicação por agrotóxicos, queimadas e conflitos com cães e humanos.
Somente entre 2017 e 2020, pesquisadores do projeto Bandeiras e Rodovias, do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), encontraram 761 carcaças de tamanduás em rodovias asfaltadas do Mato Grosso do Sul.
Este número, no entanto, é bastante subestimado. Ele se refere a apenas 14% das rodovias asfaltadas no estado e a apenas tamanduás encontrados na pista ou no entorno. Muitos animais se arrastam e morrem em outros locais, ou são comidos por outros animais antes dos pesquisadores chegarem, não sendo possível fazer sua contagem.
Um estudo sobre esses atropelamentos, publicado pelo ICAS em 2021, estimou que os acidentes, uma das principais ameaças ao animal no Mato Grosso do Sul, reduzem em 50% a taxa de crescimento da população da espécie, o que os torna drasticamente menos resilientes a outras ameaças e retarda o tempo de recuperação das populações.
Uma nova chance aos tamanduás
Ainda que os estudos sobre as pressões sofridas pelos tamanduás-bandeira sejam escassos, já se sabe que os atropelamentos são uma realidade comum a muitos estados.
Os tamanduás Dom e Helen foram resgatados em 2023, ainda bebês, grudados no corpo de suas mães, atropeladas e mortas em estradas de Minas Gerais. Os filhotes foram resgatados, em momentos diferentes, e recebidos pela equipe do Instituto Estadual de Florestas (IEF).
O projeto, iniciado em 2017, surgiu por necessidade, conta a médica veterinária do IEF, Juliana Magnino. “Nós temos uma casuística absurda de resgate de filhotes órfãos de tamanduá. Lembro que [antes do início do projeto] a todo momento a polícia ligava dizendo ‘chegou mais um, pegamos outro’. Isso não só em Uberlândia, mas em cidades em volta. E a gente pensou que era preciso fazer alguma coisa, dar um destino para esses filhotes. Nós perguntávamos: ‘esses bichos vão todos pro zoológico?’. Isto é, a gente entendeu que o tamanduá precisava de ajuda”, explicou a veterinária, que desde o início está à frente da iniciativa.
Anualmente, o IEF recebe, em média, 10 filhotes órfãos de tamanduá-bandeira. Em alguns anos, no entanto, os números foram bem maiores. “Em 2017, quando começamos, foram 16 resgates feitos. E isso foi o que a gente conseguiu documentar”, explica a veterinária.
Como acontece com muitos projetos de conservação no Brasil, Juliana Magnino conta que, no início, tudo teve de ser improvisado. “Começamos do zero, o primeiro recinto de reabilitação que usamos era um antigo galinheiro em uma área de um parceiro cadastrado com área de soltura de animais silvestres”.
Com os anos, a iniciativa cresceu e se estruturou. Hoje, o TamanduASAS faz parte do Plano de Ação Nacional para a Conservação do Tamanduá-bandeira no Brasil, do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMbio). O projeto mineiro só existe por conta de parcerias estratégicas, como a do Ministério Público do Estado, da organização sem fins lucrativos Nobilis, e do próprio Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), entre outros.
Nos anos de 2021 e 2022, o projeto foi vencedor do Prêmio Alcides Pissinatti da Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens (ABRAVAS), que reconheceu o sucesso na soltura e monitoramento contínuo da espécie.
Preparando para o retorno à natureza
Depois de resgatados, Dom e Helen receberam cuidados por cerca de um ano e dois meses, até que estivessem preparados para voltar à natureza. Apesar do enternecimento que filhotes órfãos possam causar em seus humanos cuidadores, a veterinária do IEF conta que a reabilitação dos animais resgatados é feita seguindo rígidos protocolos.
“A gente fala que a reabilitação começa no dia que o animal chega. Isso é uma coisa que a gente tem que pensar pra qualquer bicho que vai voltar pra natureza. Então, ele vai ser criado com o menor contato humano possível, com essa mentalidade de que ele vai ser animal que será reintroduzido”, explica.
No TamanduASAS, os animais resgatados passam por diferentes recintos. Ainda bebês, os tamanduás ficam em ambientes mais controlados, onde continuam a amamentação que foi interrompida pela morte da mãe.
Após o desmame, quando há mudança de dieta e verificação da capacidade de o animal se alimentar sozinho, ele passa para um recinto de reabilitação, em área aberta, em alguns dos parceiros do projeto.
As solturas monitoradas são feitas em cinco áreas cadastradas, previamente avaliadas. “Fazemos um estudo prévio muito detalhado antes, com inventário de fauna, avaliação dos recursos da área e entrevistas com os proprietários do entorno”, pontua a veterinária.
Os recintos onde os animais viviam permanecem abertos por algum tempo após a soltura, caso eles queiram fazer uma visita à antiga casa ou tomar um banho, e, periodicamente, ração complementar é deixada à disposição dos animais, para tornar a adaptação mais fácil.
Atualmente, o TamanduASAS tem cinco animais recebendo cuidados, já desmamados e prontos para ir para os recintos de reabilitação. A meta, segundo Juliana Magnino, é que o projeto realize cinco solturas por ano.
O coração do tamanduá
Antes de retornarem à natureza, os tamanduás Dom e Helen ganharam coletes de monitoramento com GPS e monitores cardíacos subcutâneos.
Os coletes ajudam a equipe do TamanduASAS não só a localizar os animais reintroduzidos, mas também a entender os padrões de dispersão e as áreas preferidas deles. Tais informações ajudam a compor um banco de dados para auxiliar futuras solturas.
Já a implantação de monitores cardíacos tem o objetivo de avaliar o bem-estar do animal, já que ele mostra não só o ritmo cardíaco, mas também fornece outros parâmetros fisiológicos e de composição corporal.
“Com o padrão do batimento cardíaco, é possível entender como o animal está reagindo à cada situação e se, num dado momento, o animal está estressado ou tranquilo. Em alguns animais começamos o monitoramento do ritmo cardíaco antes mesmo de virem para o recinto de reabilitação, para entender também o que significa o transporte para eles e o tempo que demora para se adaptar aos recintos. É uma forma de avaliar a qualidade dos protocolos que estamos oferecendo”, explica a veterinária.
Além disso, os monitores cardíacos fornecem informação detalhada sobre a atividade dos animais, como horários de descanso e quando estão mais ativos. “O que verificamos é que nossos tamanduás [soltos e monitorados] estão dormindo no horário que um tamanduá de vida livre estaria dormindo, estão comendo na hora que um tamanduá de vida livre estaria comendo. Isso é um sinal de que a gente está no caminho certo, né?!”.
O estudo dos batimentos cardíacos dos tamanduás mineiros foi possibilitado por uma parceria do TamanduASAS com o projeto Ritmos da Vida, do Smithsonian’s National Zoo and Conservation Biology Institute, coordenado pelas pesquisadoras Rosana Moraes e Liria Hirano, do Programa de Pós Graduação em Ciências Animais da Universidade de Brasília (UNB). Ele ainda está em fase inicial e o plano é ainda colher muitos dados dos comedores de formigas.
Uma coisa, no entanto, já se sabe, o coração do tamanduá, assim como o de outros animais silvestres retirados à força de seu habitat, bate pela liberdade.
Fonte: O Eco