O biólogo Ganesh Marin ficou eufórico quando observou pela primeira vez uma onça-pintada em uma reserva no norte de Sonora, no México, em 2020.
O felino apareceu repetidamente nas imagens das câmeras instaladas por Marin ao longo da fronteira do Arizona, Estados Unidos, o que indicava que estava fazendo da região seu lar. Marin apelidou a onça-pintada de “Bonito”, ou El Bonito, em espanhol.
Marin é explorador da National Geographic, e, em 2021, notou algo incomum nas fotos. O padrão das pintas na pelagem do animal parecia mudar discretamente de uma imagem para outra. Uma análise mais detalhada confirmou que ele, de fato, não estava vendo uma, mas duas onças-pintadas machos jovens.
Já foi bastante emocionante assistir Bonito se desenvolver através das lentes da câmera, conta Marin. “Ele foi crescendo, ficando maior, seu pescoço foi ficando mais grosso e sua cabeça mais volumosa”, lembra. Mas ao perceber que se tratava de mais de um felino: “Foi impressionante.”
A presença de uma segunda onça-pintada a alguns quilômetros ao sul da fronteira com o Arizona fornece ainda mais evidências de que os grandes felinos estão se movendo para o norte, para recuperar o antigo território, segundo John Koprowski, biólogo e reitor da Universidade de Wyoming. John também é o orientador de doutorado de Marin.
Ainda no início dos anos 1900, as onças-pintadas eram encontradas do extremo norte, no Grand Canyon, ao sul, próximo da Argentina. Mas em meados do século 20, a caça, muitas vezes patrocinada pelo governo norte-americano, eliminou esses felinos do Arizona e do Novo México, a porção norte do território deles.
Marin batizou a segunda onça-pintada de Valerio, em homenagem a Valer Clark, um conservacionista que fundou a organização Cuenca Los Ojos. Essa organização ambiental binacional agora administra uma reserva de vida selvagem de quase 49 mil hectares ao longo da fronteira em Sonora, onde Marin faz sua pesquisa como estudante de doutorado na Universidade do Arizona.
Os felinos podem expandir seu território para o norte se os humanos permitirem, mas enfrentam obstáculos como estradas e a fronteira entre os Estados Unidos e o México. Durante o governo Trump, foram construídos mais de 725 quilômetros de muros fronteiriços de nove metros de altura, a maior parte no Arizona e no Novo México, bloqueando corredores essenciais aos animais selvagens.
“Há animais a poucos quilômetros da fronteira que podem ser facilmente impedidos de se deslocar mais para o norte se a fronteira se tornar impenetrável”, alerta Koprowski, devido à extensão do muro fronteiriço e à expansão das rodovias.
“Mas, acima de tudo, a descoberta oferece grandes esperanças de que essa conexão possa ser mantida”, diz ele, e até, possivelmente, melhorada.
Antigo território das onças-pintadas
As fronteiras do Arizona e do Novo México, e sua diversidade de montanhas, conhecidas como Sky Islands, representam uma das áreas de maior biodiversidade da América do Norte. As montanhas se intercalam com as planícies secas dos desertos de Sonora e Chihuahuan, bem como com diversas pradarias e áreas florestais, que abrigam coletivamente milhares de espécies de plantas e animais.
Há muitos anos, onças-pintadas, onças-pardas, jaguatiricas, ursos e diversas outras espécies que necessitam de territórios extensos frequentam livremente esse bioma contíguo. Mas obstáculos como estradas e cercas agora dificultam a movimentação desses animais.
No entanto, nos últimos 25 anos, pelo menos sete onças-pintadas foram vistas no Arizona, incluindo uma que ainda vive em uma cordilheira no sudeste do estado, e aproximadamente o mesmo número foi observado na fronteira com o México.
Uma onça-pintada macho apelidada de Bonito apareceu nas imagens das câmeras do biólogo Ganesh Marin, em outubro de 2020. Logo depois, um outro indivíduo apareceu também. O avistamento revela a importância de preservar os corredores de vida selvagem e recuperar os habitats.
Além disso, um estudo de março de 2021 estima que boa parte da região seja o principal habitat da onça-pintada e provavelmente poderia abrigar uma população de algumas centenas de animais. As onças-pintadas são classificadas como uma espécie em risco de extinção nos Estados Unidos.
Cerca de 200 indivíduos vivem no estado mexicano de Sonora. Ambos os felinos que Marin observou, provavelmente, nasceram perto do Arizona, talvez dentro de um raio de cerca de 100 quilômetros, diz Gerardo Ceballos, pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México.
As fêmeas de onça-pintada geralmente não se aventuram para além da região onde nasceram e essa restrição de mobilidade limita a expansão da espécie. Os machos, no entanto, podem vagar por toda parte em busca de território e parceiras. Os grandes felinos enfrentam diversos tipos de ameaças no México, incluindo caça ilegal e caça como forma de retaliação por serem considerados predadores de gado.
“Se continuarmos as ações para proteger as onças-pintadas, talvez dentro de cinco anos possamos ver fêmeas com filhotes nos Estados Unidos”, diz Ceballos.
Mas para se deslocarem para o norte, os felinos precisam de corredores naturais preservados. Qualquer ampliação do muro na fronteira prejudicará ainda mais a capacidade dos animais de se moverem livremente – e partes do muro precisarão ser abertas para reduzir o dano que já causou, de acordo com especialistas.
O governo Biden prometeu não ampliar significativamente o muro na fronteira, e algumas discussões estão em andamento para mitigar os danos à vida selvagem, embora ainda não tenham sido feitas grandes mudanças.
“Infelizmente, o muro fronteiriço atualmente representa um novo obstáculo para as onças-pintadas chegarem aos Estados Unidos”, diz Antonio de la Torre, biólogo do grupo conservacionista Jaguares de la Selva Maya, que estuda os felinos.
“É fundamental implementar medidas de mitigação para solucionar esse problema se quisermos garantir a extensão natural das onças-pintadas para o norte.”
Com proteção, as onças irão para o norte
Até recentemente, grande parte da região onde hoje é o norte de Sonora e o sudeste do Arizona tinha áreas úmidas em abundância, conhecidas em espanhol como cienegas. É por isso que a organização Cuenca Los Ojos está trabalhando para trazer água de volta à paisagem, tendo recuperado até o momento cerca de 30 hectares de pântanos e córregos, diz Jeremiah Leibowitz, diretor executivo da organização.
Antes de 2019, os 48 quilômetros da fronteira norte da área de Cuenca Los Ojos, que fica ao lado de Arizona, tinham apenas barreiras simples para veículos e cercas de arame farpado com alguns metros de altura, que a vida selvagem conseguia atravessar facilmente.
Mas agora, há muros de nove metros, conta Leibowitz. No entanto, alguns corredores continuam sem esses altos obstáculos, como o extremo sul das montanhas Peloncillo, que atravessam o Arizona e o Novo México.
Essa área, assim como grande parte de seus arredores, tem a incidência de metade, ou até mais, das chuvas durante a estação das monções, de junho a setembro. Após a colonização europeia, as paisagens foram modificadas e passaram a absorver menos água, com pradarias sendo substituídas por plantações e o aumento de estruturas impermeáveis, incluindo o asfalto.
Como resultado, as chuvas podem rapidamente formar enxurradas no solo, causando erosão.
Os administradores da reserva de Cuenca estão trabalhando para recuperar a permeabilidade original do terreno, em parte reduzindo a velocidade da água com estruturas em pedra para controle da erosão, diz Leibowitz.
Os castores, que constroem represas que também controlam o fluxo de água, também voltaram recentemente a muitos dos córregos da reserva. Ambas as onças-pintadas de Sonora foram vistas perto de um riacho na reserva que funciona o ano todo.
Onças-pintadas: estabelecendo um território
Valerio e Bonito, às vezes, frequentavam a mesma região com poucos dias de diferença, de acordo com os dados da câmera. Marin imaginou que, à medida que crescessem, um tentaria expulsar o outro – ao atingir a idade reprodutiva, as onças-pintadas machos tentam estabelecer seu próprio território.
Com certeza, Valerio, que é um pouco maior, venceu essa disputa – ele foi visto pela última vez em março – ao passo que Bonito não é observado desde 22 de outubro de 2021. Marin suspeita que ele esteja em algum lugar próximo, mas ninguém sabe ao certo, pois os animais podem percorrer vastas extensões de terra.
Além de procurar animais selvagens utilizando câmeras, Marin trabalhou com os biólogos Melissa Merrick, Katie Benson e Matt Valente para coletar amostras de DNA ambiental de alguns dos riachos, nas quais foram encontradas evidências de onças-pintadas, ursos-negros, veados-de-cauda-branca, ratos-veadeiros e outros indivíduos da fauna local.
A equipe espera expandir a amostragem e o estudo de DNA ambiental para obter mais informações sobre a presença de animais selvagens terrestres, uma prática ainda pouco disseminada, conta Benson.
Enquanto isso, a pesquisa demonstra que a área abriga diversas espécies importantes e que a recuperação do habitat pode aumentar a biodiversidade de determinada região.
“O fato de os animais estarem utilizando essa área repetidamente indica a qualidade do habitat e a necessidade de aumentar essa conectividade” com áreas vizinhas do México e dos Estados Unidos, diz Koprowski.
Fonte: National Geographic