Hoje quero falar mais diretamente sobre o abolicionismo, ou seja, a filosofia da libertação animal. Posteriormente, irei mencionar então, o veganismo, e então creio que estaremos todos prontos para debater questões mais específicas.
A premissa básica do abolicionismo é muito simples e inteligível para qualquer pessoa: nenhum indivíduo é propriedade de outro, todos devem ter direitos iguais à liberdade e nenhum deve ter o direito de dispor sobre a vida e a liberdade de outro indivíduo. O abolicionismo animal estende esta premissa além da espécie humana, para todos os indivíduos do mundo animal.
O motivo para isso me parece tão óbvio quanto o azul do céu. Há apenas uma explicação para um embotamento tão grande da mente que torne as pessoas cegas a essa explicação, a qual irei expor depois. Por ora, o motivo:
Animais são dotados de sensações e sentimentos. Eles são capazes de sentir dor e prazer. Eles são capazes de procurar, por si mesmos, aquilo que lhes proporciona bem-estar, e evitar aquilo que lhes prejudica, seja como for. O nome desse dom é SENCIÊNCIA. Todo animal vertebrado o possui, e mesmo animais invertebrados como insetos, aranhas e moluscos.
Possuir SENCIÊNCIA significa que, aprisionar um animal, interferir na sua natureza, separá-lo de seus semelhantes, ou infligir-lhe dor desnecessária por meio de experimentos de laboratório, castração e mutilações em geral e, em última instância, matá-lo, implica, deliberadamente e sem uma justificativa razoável, causar sofrimento a um indivíduo e violar seus interesses básicos.
E por que isso seria moralmente inaceitável? Por três motivos. O primeiro, e mais básico, que abordamos no texto anterior, é que agir dessa maneira significa violar os direitos desses animais, sendo a senciência o princípio que fundamenta a atribuição dos direitos à vida, à liberdade, à integridade. Segundo, porque o ser humano é um ser moral, capaz de refletir sobre as implicações de seus atos. E é um DEVER do ser humano agir de acordo com essa capacidade. Dizer que os animais não têm a mesma capacidade de reflexão ética não justifica tratá-los como objetos dos quais podemos dispor. Afinal, bebês, crianças, pessoas em coma… Também não têm, ou têm de forma muito limitada, a capacidade de refletir moralmente. E isso não faz com que seja justo dispor de suas vidas. O que nos leva ao terceiro motivo: não existe nada na natureza – NADA – que justifique a dominação que o ser humano impõe sobre as demais espécies.
O ser humano gosta de justificar sua dominação por meio de uma suposta superioridade. Em primeiro lugar, não há superioridade na natureza: cada espécie se basta, tem sua própria função e a ela está adaptada, todas têm um papel no equilíbrio ecológico e existem para seus próprios interesses. As diferenças existentes não significam absolutamente nada, até porque não há nenhuma habilidade humana que não esteja presente, em maior ou menor grau, nos animais que o ser humano, arrogantemente, qualifica como “irracionais”. Vejamos:
Os animais são dotados de linguagem, umas mais sofisticadas, outras menos, mas ainda assim as possuem. Mesmo animais considerados tão “primitivos” como insetos têm linguagens às vezes tão complexas que o ser humano até hoje não decifrou – é o caso dos vaga-lumes, que usam sua capacidade de refletir luz para a comunicação.
Alguns animais são capazes de construir ferramentas, como é o caso dos primatas ditos “superiores”. Construir ferramentas é produzir alterações na natureza. “Transformar a natureza” é a habilidade que define a existência de cultura.
Muitos animais são dotados de autoconsciência, ou seja, conscientes de serem um indivíduo. Para alguns estudiosos, a autoconsciência pode ser constatada pela capacidade de se reconhecer no espelho, por exemplo. Os cientistas atribuem essa capacidade, por exemplo, aos primatas “superiores”, elefantes e golfinhos. Entretanto, pode-se refutar essa perspectiva limitada do que é autoconsciência demonstrando o antropocentrismo que lhe serve de premissa: a capacidade de interpretar imagens, reconhecendo-se no espelho, é típica do ser humano, pois a visão é uma habilidade fundamental para nós. No entanto, há outros animais que interpretam o mundo principalmente através de outros sentidos. Mesmo entre humanos, podemos nos questionar: pessoas cegas não são autoconscientes por não se reconhecerem no espelho? Pessoas humanas com esse tipo de limitação desenvolvem o olfato e a audição para poder interpretar o mundo à sua volta – logo, a visão não é o único veículo para auferir autoconsciência. Cães, que não “passam” no teste do reconhecimento no espelho, dependem fundamentalmente do olfato, e por intermédio dele reconhecem uns aos outros. Embora o teste do espelho seja válido, portanto, para questionar o antropocentrismo inerente na afirmação de que só seres humanos têm consciência individual, ele é limitado pela própria premissa antropocêntrica da qual parte.
Muitos animais são dotados de memória prodigiosa, e são capazes de solucionar problemas e interpretar situações. É um mecanismo básico da sobrevivência de qualquer animal: se você sobrevive a uma situação de perigo, você a irá evitar no futuro, para preservar-se. Se você vive uma situação prazerosa, você irá querer revivê-la. Um exemplo muito claro, e que novamente mostra que de forma alguma essas características se limitam a animais mais “complexos”, é como os animais aprendem a distinguir presas e plantas venenosas. O mal-estar causado pela ingestão de animais ou plantas venenosas faz com que um passarinho, por exemplo, não volte a comer daquele animal ou planta. Isso não é instinto, é aprendizado. A isso se chama raciocínio.
Muitos animais também praticam o sexo por prazer. E mesmo aquilo que Claude Lévi-Strauss achou ser o diferencial definitivo entre humanos e animais, se mostrou um equívoco: bonobos, os chimpanzés-pigmeus, também praticam o sexo genital frontal, olho no olho.
Mesmo a consciência do tempo e até a pedra final do argumento antropocêntrico, a transcendência, não são exclusivamente humanas. Elefantes, por exemplo, reconhecem as ossadas de seus antepassados, as tocam, as contemplam. Isso é uma clara demonstração de percepção da própria transitoriedade (se acharmos que a ação de defender-se do perigo for apenas instintiva…).
Por outro lado, não só muitas dessas sensações escapam a certos seres humanos – e nem por isso nos sentimos no direito de escravizá-los, maltratá-los, matá-los – como, em qualquer ser humano, nem tudo se explica pela racionalidade. Quando uma pessoa tem sua mão exposta ao fogo, a reação dela de tirar a mão para evitar a queimadura não é racional, mas instintiva. Quando ela vê fogo, entretanto, sua reação é racional, ela sabe interpretar que fogo é perigoso. O mesmo se dá com os demais animais. Assim sendo, as diferenças entre seres humanos e animais não-humanos são quantitativas, de grau, e não qualitativas, de tipo.
Afirmar que as diferenças de habilidades entre seres humanos e outros animais implica superioridade é tão absurdo quanto afirmar que pássaros, morcegos, insetos são superiores ao ser humano por serem capazes de voar sem precisar construir artefatos para isso. A única razão pela qual a habilidade de voar não é um argumento razoável para diferenciar “superiores” e “inferiores” é porque o ser humano não voa. Assim sendo, temos que voltar à afirmação de Charles Darwin: as diferenças entre o ser humano e os demais animais são de grau, não de tipo. Podemos ter algumas habilidades mais desenvolvidas que eles – assim como eles, outras habilidades mais desenvolvidas do que nós. Disse não se pode inferir, racionalmente, que uma espécie qualquer seja superior à outra.
Mas na verdade a questão é muito mais simples que isso. Não se trata de comparar seres humanos e animais não-humanos no que se refere a determinadas características-chave. Isso só é feito para rebater os argumentos antropocêntricos. O essencial é que, mesmo que animais não possuam determinadas características por nós valorizadas – o que é verdade para certas espécies – todo animal merece ser respeitado em sua integridade física e psíquica com base na sua capacidade de experimentar dor e prazer. É imoral reduzir um ser senciente, que tem sua própria individualidade, à condição de objeto, aprisionando-o e dispondo de sua vida. Simples assim.
Uma refutação freqüente a essa afirmação é, então, dizer que a natureza não é moral, que o leão come a gazela, mata os filhotes de outros leões, que a hiena devora sua presa ainda viva, etc., etc., etc. Como eu disse anteriormente, o leão, a hiena e todos os demais animais não são seres morais. E eles vivem de acordo com sua própria natureza: o leão e a hiena, como animais carnívoros, estão adaptados a esta dieta e dependem dela. O leão é incapaz de refletir sobre o dano que causa à gazela. Este não é o caso do ser humano. A sua inteligência implica responsabilidade. Assim, tudo que lhe basta é questionar se ele pode sobreviver de acordo com essa consciência. E, de fato, ele pode. Fisiologicamente, o ser humano está muito bem adaptado a uma dieta herbívora. O ser humano pode abrir mão da carne e produtos de origem animal sem comprometer sua saúde e a qualidade de sua vida. Logo, é seu DEVER MORAL fazê-lo – não é uma escolha sem conseqüências. Além disso, o leão e a hiena não criam, aprisionam e engordam sua presa. Na natureza, as chances são iguais. Na verdade, todos os predadores têm mais fracasso que sucesso em suas caçadas – as presas do leão têm a chance de escapar, o que é mais do que se pode dizer das vacas, porcos e outros animais confinados pelo ser humano. Enfim, a análise da fisiologia e da natureza associada aos pilares morais da humanidade mostram, claramente, que a criação de animais pelo ser humano, além de uma violação da natureza do animal, é um ato eticamente injustificado.
E o que impede o ser humano de enxergar isso? Um tipo de preconceito que afirma que o ser humano é superior aos demais animais. A este preconceito chamamos de ESPECISMO. Como tentei demonstrar brevemente, essa suposição de superioridade não tem qualquer fundamento. Exceto pelo fato de que, ora, somos humanos, e nos preocupamos mais com outros seres humanos que com outros animais. Isso é compreensível. Nós nos preocupamos mais com outros humanos, assim como nos preocupamos mais com nossos amigos que com estranhos. Assim, também, como nos preocupamos mais com nós mesmos que com nossos amigos. Isso, entretanto, não é justificativa para aprisionar, torturar e matar animais, estranhos ou amigos.
Do ponto de vista da ética, não importa nossos sentimentos por nossas vítimas, e sim o sofrimento que podemos lhes causar. Se e esse sofrimento é evitável, ele se torna moralmente errado.
Por fim, as pessoas, num laivo de “realismo” e “praticidade”, são capazes de afirmar: “mas muitas pessoas dependem da carne pra viver; a pecuária gera emprego e renda; os testes em laboratório são necessários para salvar vidas”. Tudo isso é facilmente refutável, e o será mais adiante. Por ora quero acrescentar, quanto a isso, apenas uma coisa: um dia também se afirmou que a escravidão humana era necessária para a prosperidade e o bem-estar de nosso país. A escravidão ter contribuído para a formação do Brasil não a torna justa, nem ontem, nem hoje. E isso nos leva a uma conclusão muito simples. Como disse o filósofo Tom Regan:
“[Assim como] os interesses de quem se beneficia com a escravidão [humana] não deveriam ter qualquer importância na decisão de abolir as instituições que sustentam seus interesses, (…) os interesses de quem se beneficia da exploração animal não deveriam ter qualquer importância na decisão de abolir as instituições que sustentam seus interesses”¹
Por isso somos abolicionistas: porque queremos que todos os animais sejam livres para buscar seu próprio bem-estar, sem a interferência indevida do ser humano. Sigamos nossas vidas e deixemos os demais animais seguirem as suas.
ABOLICIONISTAS: NÃO QUEREMOS JAULAS MAIORES, QUEREMOS JAULAS VAZIAS.
[1] Apud FELIPE, Sônia T. O Princípio da Coerência na Ética de Tom Regan. Texto apresentado no 3.º Colóquio de Etica Global, UFSC, Florianópolis, Auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 16/05/ 2003