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POLÍTICAS PÚBLICAS

Por que a reforma do Código Civil é tão importante para os animais

11 de fevereiro de 2025
Vicente de Paula Ataide Junior
6 min. de leitura
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Foto: Ilustração | Freepik

O Código Civil brasileiro precisa ser reinterpretado, à luz da Constituição Federal de 1988, para afastar qualquer conclusão que resulte em atribuir aos animais o status jurídico de “coisa”, “bem móvel” ou “bem semovente”.

A descoisificação dos animais é – como disse ao terminar o artigo – o fim último do Direito Animal, como meio para abolir todas as formas de violência, discriminação e opressão contra esses seres vivos.

Pois acaba de ser protocolado, no Senado da República, Projeto de Lei n.º 4, de 2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), destinado a atualizar o Código Civil brasileiro, que é de 2002. Esse projeto de lei é uma reprodução do anteprojeto de lei elaborado pela Comissão de Juristas encarregada, pelo próprio senador Pacheco, enquanto presidente do Senado, de revisar e atualizar o Código Civil. Tive a honra de fazer parte dessa Comissão, na qualidade de membro-consultor para os direitos animais.

Por que os agentes da causa animal devem se preocupar com a reforma do Código Civil?

Porque essa reforma deve mexer com a natureza jurídica dos animais, ao menos no que se refere à legislação civil.

Os códigos civis que o Brasil já teve nunca trataram diretamente da natureza jurídica dos animais. Nunca disseram que animais são coisas ou bens, nem mesmo que são sujeitos de direitos.

Quem estuda o Direito Animal sabe que, desde a Constituição de 1988, temos condições normativas para afirmar que animais são sujeitos de direitos porque possuem valor intrínseco e dignidade própria, reconhecidos, implicitamente, pelo texto constitucional e assim acolhidos pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.¹

Mas é preciso compreender que as definições contidas no Código Civil são fundamentais para todo o conjunto de leis e são levadas muito a sério pelos juízes, a quem compete aplicar o ordenamento jurídico para resolver litígios.

Assim sendo, caso a reforma do Código Civil, ao se transformar em lei, acabe dizendo que animais são “objetos de direitos”, ou definindo-os como coisas ou como bens semoventes, ainda que isso possa ser inconstitucional (porque viola o princípio da dignidade animal ), teremos muitas dificuldades para convencer juízes a não tratarem animais como propriedade humana e a impedirem uma série de condutas que violam a dignidade animal.

Esse retrocesso astronômico pode acontecer caso todos nós não estejamos atentos à tramitação do PL nº 4/2025.

Mas, é claro, temos esperança de que um outro cenário possa advir desse projeto, no sentido do reconhecimento de que animais são sujeitos de direitos ou, ao menos, no sentido de o Código Civil não impedir a atribuição de direitos aos animais.

O artigo 91-A, constante do projeto de lei de reforma do Código Civil, diz o seguinte:

“Seção VI Dos Animais
Artigo 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.
§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais.
§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.”

Parece um pouco mais do que evidente que o caput do artigo 91-A é um avanço em termos de natureza jurídica dos animais: não são qualificados como coisas, nem como bens, mas pelo que efetivamente são, ou seja, seres vivos sencientes, tal qual se extrai na interpretação do inciso VII, parágrafo primeiro, do artigo 225 da Constituição.

A precisa e exata qualificação jurídica dos animais é delegada à lei especial (§ 1º) – um Estatuto dos Animais –, a qual, no entanto, precisará respeitar dois vetores fundamentais:

  • deverá dispor sobre um tratamento físico e ético adequado aos animais;
  • deverá respeitar a natureza especial dos animais, enquanto seres vivos sencientes, por isso passíveis de proteção jurídica especial.

Mas o texto do projeto de lei embute um perigo: a adoção do regime subsidiário de bens aos animais, enquanto não vier a lei especial exigida para a sua definitiva qualificação jurídica (cf. § 2º do artigo 91-A).

Registrei várias objeções e emendas a esse parágrafo, durante a elaboração do anteprojeto de lei pela Comissão de Juristas, mas, infelizmente, fiquei vencido.

Não obstante esse perigo de manter os animais no passado, ainda qualificados como bens, é de se notar que a aplicação desse regime subsidiário de bens é atenuada ou mitigada, pois apenas serão aplicáveis aos animais as disposições sobre bens “que não forem incompatíveis com a sua natureza especial de seres vivos sencientes”.

Isso quer dizer que, mesmo com esse regime patrimonial transitório, não se descarta a possibilidade de se atribuírem direitos a animais, pois isso está de acordo com a sua natureza especial de seres vivos sencientes e dotados de dignidade própria, como quer a Constituição.

Mais do que isso, esse regime subsidiário de bens, por ser aplicado de forma mitigada aos animais, de maneira a respeitar o estatuto da senciência, não perturba as leis estaduais mais avançadas, as quais já definem animais como sujeitos de direitos ou atribuem aos direitos determinados direitos fundamentais (Santa Catarina, 2018; Paraíba, 2018; Espírito Santo, 2019; Rio Grande do Sul, 2020; Minas Gerais, 2020; Roraima, 2022; Pernambuco, 2022; Goiás, 2023; Amazonas, 2023 e Distrito Federal, 2024).

De qualquer forma, o Congresso Nacional poderá alterar esse § 2º adotando um outro regime subsidiário: a professora Maria Berenice Dias, reconhecida jurista do Direito das Famílias, membro da Comissão, sugeriu o regime destinado às crianças e adolescentes; eu sugeri o regime de entes jurídicos despersonalizados, ou seja, dos entes que são sujeitos de direitos, mas não são pessoas (pois não têm personalidade jurídica), como o nascituro. Em qualquer dessas alternativas, os animais deixariam, definitivamente, a natureza jurídica de bens, ainda que não ingressem, como poderiam, na definição de pessoas.

Também nos parece possível propor ao Congresso Nacional uma modificação topográfica do artigo sobre animais, como o fez a reforma do Código Civil português, em 2017, no sentido de localizá-lo fora do livro relativo aos bens da Parte Geral, prevenindo qualquer interpretação no sentido de atribuir aos animais essa qualificação reducionista e incompatível com o estatuto da senciência animal, de índole constitucional.

A reforma do Código Civil brasileiro já começou e há notícias de que possa ser aprovada, no Senado, ainda neste ano de 2025, para depois seguir à Câmara dos Deputados.

Podemos avançar na qualificação jurídica dos animais no Código Civil, para contar com mais esse instrumento da defesa dos seus direitos fundamentais. Mas também podemos antever a possibilidade de retrocessos ou de mudanças cosméticas, que nada alterem ou que nada ajudem a mudar.

Portanto, é hora de começar a mobilização da causa animal para acompanhar bem de perto a tramitação deste projeto de lei. Como diz a filósofa estadunidense, Martha Nussbaum,

“os humanos terão que tomar a iniciativa de fazer as leis e estabelecer as instituições do governo, mas não há razão para que os humanos façam isso apenas para e sobre outros humanos. Não há nenhuma boa razão para dizer que apenas algumas criaturas sencientes importam. Cada uma importa à sua maneira.”

Fonte: Fauna News

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