Por Ana Cardilho
em colaboração para a ANDA
HARTFORD, Connecticut – Uma chimpanzé mascote de 90 quilogramas, que já apareceu em anúncios de televisão, lesionou na segunda-feira, 16, uma mulher que visitava sua proprietária e encurralou um policial e sua patrulha antes que os disparos causassem sua morte, disseram as autoridades. Também ficaram feridos a proprietária da chimpanzé de 15 anos e dois agentes, ainda que a polícia tenha dito que a extensão de suas lesões não foi conhecida de imediato. Ferida pelos policiais, a chimpanzé fugiu. Conklin disse que a polícia seguiu o rastro de sangue pela entrada dos carros, desde a porta principal da casa até o local onde vivia o mascote, que morreu por causa dos ferimentos.
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Os policiais que atiraram em mim, com balas de verdade e não anestésicos, declararam que não sabem o que aconteceu. Por que eu, uma chimpanzé de 15 anos, de repente fiquei agressiva, mordi a amiga de minha dona e depois disso não consegui me acalmar?
Especialistas em comportamento animal foram consultados, professores-doutores em chimpanzés certamente serão ouvidos. Cada um pode traçar sua própria teoria. Eu, se pudesse falar, contaria a minha versão dos fatos.
Não nasci de chocadeira, mas fui tirada do meu habitat, da minha família, antes mesmo de poder abrir os olhos direito e ver o mundo. Desde muito cedo estive rodeada de pessoas e apartada dos espécimes da minha raça, roubada do que deveria ser meu lugar no mundo: uma selva. Antes de completar um ano de idade fui vendida a uma família e virei o mascote da casa. Não bastavam gatos, cachorros e pássaros presos. Eles achavam bonito ter uma chimpanzé sentada no sofá. Achavam divertido me vestir com roupas e babados e riam a valer tentando me ensinar a usar a colher na hora da comida: hambúrguer, batata frita e sorvete.
Da janela de casa eu via algumas árvores lá fora. Meu corpo gritava por elas. Sentia vontade de escalar, me balançar, saltar de um galho ao outro. Eu queria respirar o cheiro do mato, eu precisava viver minha essência animal. Mas, nem pensar! Minha dona determinou que eu deveria dormir numa cama, usar perfume francês, andar o mais ereta possível e conseguiu que eu trabalhasse em alguns comerciais. Estive em várias agências publicitárias enfrentando longas horas de fotos e filmagens.
Quinze anos. Esse foi o tempo. A família quase nem se lembrava de que eu era uma chimpanzé. Pensavam em mim como a macaquinha de estimação que rendia uns cachês interessantes vez ou outra.
Só que eu nunca me esqueci de quem sou e nunca aceitei que eles achassem que poderiam roubar-me o direito a uma vida de verdade.
Na manhã do ataque eu acordei intratável. Sonhei com uma selva fechada, a chuva caindo, dezenas de chimpanzés soltos, correndo, saltando. Os sons dos meus iguais, o chamado deles. Estava irritada, é bem verdade, mas piorei muito quando a amiga de minha dona chegou para uma visita. Ela sentia medo de mim, exalava o cheiro do medo e, quando começou a gritar depois que lhe mostrei os dentes numa careta caprichada, eu também comecei a tentar gritar e não vi mais nada. Acho que a mordi e mordi também minha dona, que tentou me conter. Depois vieram os policiais, eu estava encurralada e fiz o que qualquer animal faria numa hora dessas: tentei me defender partindo para o ataque. E então vieram os tiros. Fugi, mas era tarde. Não havia mais vida em mim.
Na verdade, nunca houve. Há 15 anos eu já estava morta.
Ana Cardilho é escritora e jornalista. Com um olho na realidade e outro na prosa imaginária conta com mais de 20 anos de experiência em rádio e TV, tendo feito reportagens, edição e fechamento de telejornais e programas, e é ficcionista.