Por David Arioch
Pode ser colocado para votação no plenário da Câmara dos Deputados nos próximos dias um projeto de lei que, se aprovado como está, provocará uma explosão nas já altas taxas de desmatamento no país e reduzirá a proteção da população em relação aos impactos decorrentes da agropecuária, construção de fábricas, termelétricas, empreendimentos de mineração, dentre outras obras que afetam o meio ambiente e a saúde humana.
O projeto de lei em questão é o PL 3729 de 2004, que estabelece novas regras para o licenciamento ambiental no país e foi incluído pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, em sua lista de projetos prioritários para “destravar” investimentos no país. Para tanto, ele escolheu o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) para relatar o projeto, com a seguinte diretriz: dar eficiência aos procedimentos administrativos sem diminuir padrões de proteção ambiental.
O substitutivo que vai à votação, disponibilizado na última quinta-feira (08/08), no entanto, não se enquadra nessa diretriz. Pelo contrário, retrocedeu em diversos pontos das versões anteriores, surpreendendo técnicos e organizações da sociedade que vinham colaborando para equilibrar o texto.
Estradas, grandes obras e desmatamento
A proposta simplesmente dispensa de prévia avaliação de impacto ambiental o asfaltamento de estradas precárias que cortam áreas bem preservadas de floresta, permitindo que ela ocorra por meio do auto licenciamento (Licença por Adesão e Compromisso). Pior ainda, alterando regra atualmente existente, proíbe que o órgão ambiental exija do empreendedor – frequentemente o próprio Governo Federal – a adoção de medidas para controlar o desmatamento induzido pela instalação de obras de infraestrutura na floresta, ou mesmo que negue uma licença em função do previsível aumento incontrolável da grilagem e consequente derrubada de florestas em regiões ambientalmente sensíveis ou bem preservadas.
Isso porque o projeto dispensa, no caso de licenciamento de novas obras, que seja feita análise e proposição de medidas de controle para os ditos impactos “indiretos”. Com isso, o poder público deixará de se preocupar com o desmatamento que resulta não da obra em si, mas da abertura de novas áreas para exploração agropecuária e madeireira, o que valoriza a terra e atrai novas pessoas para regiões remotas e até então bem conservadas.
Um caso exemplar ocorreu com as Usinas Hidrelétricas de Belo Monte, no Pará, e Jirau/Santo Antônio, em Rondônia. Os dois municípios nos quais estão inseridas, Altamira e Porto Velho, são há anos os campeões do desmatamento na Amazônia. Parte importante desse desmatamento decorre da atração de novas pessoas para a região, o que acaba estimulando invasão de terras públicas e levando a conflitos violentos com os moradores locais, incluindo povos indígenas.
Um dos objetivos declarados dos apoiadores do projeto, dentre eles o Ministro de Infraestrutura do Governo Bolsonaro, é facilitar a reconstrução e instalação de novas estradas na Amazônia, as quais têm hoje dificuldades para conseguir licença ambiental por serem importantes indutoras de invasão de terras indígenas, áreas protegidas e desmatamento. Segundo o relator da proposta, deputado Kim Kataguiri, o desmatamento não é um problema a ser levado em consideração quando se avalia o impacto ambiental de uma rodovia.
Uma das primeiras rodovias a se beneficiar dessa alteração legislativa será a BR-319, que liga Manaus a Porto Velho. Construída durante a Ditadura Militar no Brasil, dentro da perspectiva de acelerar a colonização da região amazônica, o que levou ao desmatamento de uma área do tamanho da França em 40 anos, ela hoje tem um trecho de quase 500 km totalmente intransitável em época de chuvas e que corta uma das regiões mais bem preservadas Amazônia Ocidental.
Com as novas regras ela poderá ser reconstruída sem elaboração de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e sem qualquer tipo de avaliação prévia, pois se enquadrará na figura de auto-licenciamento (art.10). Segundo estimativas feitas por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA e da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, é esperado um aumento de 528,1% no desmatamento no entorno da rodovia até 2050, caso a reconstrução seja feita sem os devidos cuidados ambientais e sociais. A zona impactada é uma das áreas de floresta tropical mais bem conservadas do Planeta, com uma área do tamanho da Irlanda indo para o chão. Esse impacto simplesmente não será mais levado em consideração para se avaliar a viabilidade ambiental da obra, ou mesmo medidas de controle (art.3º, II).
Saúde humana em risco
Esse não é o único problema do projeto. Ao dispensar de avaliação ambiental os chamados “impactos indiretos” de uma obra, ele abre caminho para que os órgãos ambientais deem autorizações baseadas em estudos parciais, que podem deixar de fora impactos importantes para a população. Por exemplo, a construção de uma hidrelétrica pode levar a um aumento significativo no número de pessoas infectadas por malária, devido ao desmatamento realizado, à chegada de mais gente à região e ao represamento da água dos rios. Hoje os empreendedores são obrigados a adotar medidas para controlar a expansão da malária, assim como para garantir atendimento médico à população que virá a ser infectada. Com a nova lei, tudo isso desparece, pois se trata de um impacto indireto.
Auto licenciamento vira regra
Uma das novidades da lei é a previsão do Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), uma forma de licença auto declaratória por meio da qual o interessado pode instalar seu projeto sem a necessidade de avaliação prévia do órgão ambiental, uma vez que este tenha estabelecido previamente as regras ambientais que ele deve seguir. Já em uso na Bahia, essa modalidade de licenciamento foi prevista para ser aplicada a empreendimentos pequenos e de baixo impacto ambiental, o que ajudaria a direcionar o esforço de análise dos órgãos ambientais aos empreendimentos com maior risco ambiental.
O projeto de Kim Kataguiri, no entanto, prevê que essa modalidade pode ser aplicada a todos empreendimentos que eles não considerem de significativo impacto ambiental, incluindo a agropecuária. Isso exclui apenas os projetos muito grandes (hidrelétricas, ferrovias, portos, etc.) e permite que empreendimentos com médio ou alto risco ambiental, como fábricas, possam ser instalados sem análise prévia e monitoramento dos técnicos do órgão ambiental, o que aumenta o risco de acidentes ou impactos não previstos. O que poderia ser uma regra de otimização do processo administrativo com pouco risco ambiental se transformou numa porta aberta à irresponsabilidade ambiental.
Na realidade, representa, em alguns aspectos, um retrocesso de quase 40 anos na política ambiental brasileira, dado que o licenciamento ambiental surgiu no país no início dos anos 1980 como demanda de instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial, para evitar que projetos por elas financiadas continuassem levando à explosão de grilagem, desmatamento e violência decorrentes da instalação de rodovias e projetos de colonização na Amazônia.
Profusão de regras pode gerar corrupção
Versões anteriores do texto previam que tanto estados como municípios poderiam definir que tipo de empreendimento deve passar por processo de licenciamento ambiental, desde que respeitado um piso mínimo estabelecido nacionalmente, no caso dos estados ou dos municípios. Isso evitaria que houvesse uma disputa negativa entre entes federativos para atrair investimentos através da flexibilização de regras. Na versão que pode ir a votação, no entanto, essa “trava” foi retirada. Pior: o que antes deveria ser decidido por colegiados ambientais, nos quais há presença de cidadãos e órgãos de controle, agora pode ser objeto de uma simples canetada do prefeito municipal, sem qualquer tipo de controle social ou transparência.
A regra, tal como está prevista no texto de Kim Kataguiri, criará não apenas uma imensa confusão jurídica, pois cada um dos 5.570 municípios e 27 estados poderá adotar regras diferentes para o licenciamento de empreendimentos, como tornará os prefeitos mais vulneráveis à pressão de empreendedores interessados em facilitar a aprovação de seus projetos, mesmo que com grande impacto ambiental. Isso é um convite à corrupção.
Unidades de Conservação ameaçadas
A proposta também deixa de lado, na hora de avaliar os impactos ambientais, o parecer técnico dos responsáveis por gerir as Unidades de Conservação (UCs) de Uso Sustentável, que representam mais da metade das UCs brasileiras, de acordo com os dados oficiais. Se uma obra vier a impactar negativamente uma Reserva Extrativista, como vem ocorrendo com a RESEX Riozinho do Anfrísio, por exemplo, induzindo invasão de território e perda de áreas de produção de seringa, os moradores e o chefe da unidade não terão o direito de se manifestar sobre quais medidas entendem ser as mais apropriadas para evitar que esse impacto ocorra.
O papel de Rodrigo Maia
É fundamental que Rodrigo Maia entenda que o projeto, tal como está, pode trazer consequências muito negativas ao país. Só ele pode evitar que seja colocado em votação e aprovado. As organizações ambientalistas, como a WWF Brasil, afirmam que não estão contra a aprovação de uma nova lei sobre o assunto, nem se opõem ao ganho de eficiência no licenciamento, mas não aceitam nem endossam retrocessos dessa magnitude, sobretudo porque esse foi o compromisso público do presidente da Câmara dos Deputados.
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