As presentes considerações se referem a três novas leis estaduais/distrital de Direito Animal, aprovadas em 2024: a Lei 8.364, de 25 de abril, do Piauí, que instituiu a Política Estadual de Proteção à Fauna Silvestre e aos Animais Domésticos; a Lei 17.972, de 11 de julho, de São Paulo, que dispõe sobre a proteção, a saúde e o bem-estar na criação e na comercialização de cães e gatos; e a Lei 7.535, de 18 de julho, do Distrito Federal, que reconhece os animais não humanos como seres sencientes, passíveis de dor e sofrimento, que fazem jus à tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos.
O objetivo aqui é posicionar as novas leis dentre as demais do mesmo gênero, além de noticiar algumas das suas principais instituições.
Direito Animal nas leis estaduais
Do ponto de vista dogmático, o Direito Animal pode ser conceituado como o “conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ecológica, econômica ou científica” [1].
A competência legislativa para o Direito Animal é concorrente entre União, estados e Distrito Federal, conforme artigo 24, VI, “fauna”, da Constituição, cabendo as normas gerais às leis federais e as normas específicas às leis estaduais e distritais, sem desconsiderar a suplementação legislativa cabida às leis municipais (artigo 30, II, CF).
Isso significa que a leis estaduais e distritais ocupam um lugar de destaque no ordenamento jurídico animalista, pois compete a elas fixar um regramento mais detalhado sobre a subjetividade jurídica dos animais e, até mesmo, atribuir os direitos materiais a que esses seres vivos fazem jus, em observância ao princípio da dignidade animal e em concretização do direito fundamental à existência digna de todos os animais [2].
A atribuição de direitos a animais é uma nova tecnologia jurídica para a tutela da fauna, mas que tem o propósito fundamental de proteger os animais enquanto seres vivos sencientes e dotados de dignidade própria.
Foi, sobretudo, a partir de 2017, no mesmo ano de publicação do acórdão do histórico precedente do STF sobre a vaquejada, que marcou a autonomia do Direito Animal no Brasil [3], que novas leis estaduais foram produzidas, com o reconhecimento expresso de que animais são sujeitos de direitos, chegando-se, inclusive, a estabelecer um autêntico rol de direitos fundamentais animais. Portanto, foi exatamente no âmbito do Direito Animal dos Estados que se registraram os maiores e mais significativos avanços em termos de positivação dos direitos animais no Brasil.
A inovação começa em 2017, com a edição do Código de Proteção aos Animais do Estado de Sergipe (Lei 8.366/2017), que pode ser considerada um verdadeiro prenúncio à eclosão das leis estaduais animalistas posteriores, consideradas mais avançadas por adotarem, explicitamente, a linguagem dos direitos animais.
Em 2018, Santa Catarina tornou-se o primeiro estado a reconhecer, em lei, que animais são sujeitos de direitos (Lei 17.485/2018), ainda que elegendo algumas poucas espécies alcançadas por esse reconhecimento (cães, gatos e cavalos; posteriormente limitada a cães e gatos pela Lei 17.526/2018, de duvidosa constitucionalidade).
No mesmo ano da inovação catarinense, foi editada a lei estadual mais avançada do Brasil sobre direitos animais: o Código de Direito e Bem-estar Animal do Estado da Paraíba (Lei 11.140/2018). O destaque do Código paraibano de Direito Animal fica por conta da especificação dos direitos animais, não realizada diretamente pelas outras leis estaduais (até o advento do Código de Roraima e, posteriormente, do Amazonas), que se limitaram a reconhecer animais como sujeitos de direitos, sem discriminar esses direitos [4].
Na sequência, uma série de leis estaduais foram promulgadas, ampliando o espectro da típica legislação animalista.
O estado do Espírito Santo editou a Lei Complementar 936/2019, para instituir a política estadual de proteção à fauna silvestre, reconhecendo os animais não-humanos como sujeitos de direitos.
Em 2020, duas outras leis estaduais foram publicadas reconhecendo animais como sujeitos de direitos: Rio Grande do Sul (Lei 15.434/2020), em relação aos animais domésticos de estimação, e Minas Gerais (Lei 23.724/2020), mais universal, abrangendo todos os animais.
O estado do Rio Grande do Norte editou o seu Código de Defesa e Proteção aos Animais, por meio da Lei 10.831/2021, alinhando-se com as características do precursor Código de Sergipe, de 2017, sem afirmar, categoricamente, que animais são sujeitos de direitos, mas reconhecendo a senciência animal e os princípios das cinco liberdades animais.
No ano de 2022, o estado de Roraima assumiu a posição de destaque, ao instituir o seu Código de Direito e Bem-estar Animal (Lei 1.637/2022), reconhecendo, expressamente, animais como sujeitos de direitos (artigo 2º), com artigo nitidamente inspirado na codificação paraibana, mas que foi além na especificação de direitos, incluindo o direito à água e alimentos adequados e à vacinação anual contra raiva.
Atualmente, o Código de Roraima é a lei mais aderente ao Código da Paraíba (mais do que o Código do Amazonas), ainda que, em alguns pontos – como nas flexibilizadas restrições à caça, por exemplo – dele se afaste.
Também em 2022, o estado de Pernambuco, ainda que não afirme que animais são sujeitos de direitos, alterou o seu Código Estadual de Proteção aos Animais, de 2014, por meio da Lei 18.031/2022, para acolher todos os princípios exclusivos e compartilhados do Direito Animal,[5] o que equivale a afirmar a subjetividade jurídica animal.
Em 2023, o estado de Goiás editou lei para reconhecer, na linha inaugurada por Santa Catarina, cães e gatos como sujeitos de direitos (Lei 22.031/2023).
Essa lista inicial de leis estaduais foi fechada com o novíssimo Código de Direito e Bem-estar Animal do Estado do Amazonas, Lei 6.670/2023, o qual, também inspirado pela codificação paraibana (e pela posterior roraimense), tratou de atribuir, expressamente, direitos a todos os animais.
Agora, em 2024, duas novas leis estaduais e uma distrital ampliaram o ordenamento jurídico de Direito Animal, no âmbito da competência legislativa concorrente para a proteção da fauna.
A Lei de Direito Animal do Piauí
O Estado do Piauí editou seu Código Estadual de Defesa e Proteção aos Animais (Lei 7.752/2022), se coadunando com as características do Código de Sergipe e do posterior Código do Rio Grande do Norte, reconhecendo a senciência e as cinco liberdades do bem-estar animal.
No entanto, de forma surpreendente, em 2024 aprovou lei nova sobre a Política Estadual de Proteção à Fauna Silvestre e aos Animais Domésticos (Lei 8.364/2024), revogando a lei instituidora do Código Estadual de Defesa e Proteção aos Animais (cf. artigo 85 da nova lei), sem repetir o reconhecimento da senciência e das cinco liberdades, o que poderia denotar retrocesso em matéria de direitos fundamentais.
Lembrando o artigo 1º do Decreto 24.645/1934, a nova lei piauiense começa dizendo que “todos os animais são tutelados pelo Poder Público, e dele depende a autorização para qualquer ato ou prática relativa aos mesmos” e que “compete ao Poder Público e a coletividade proteger os animais, defendendo-os de todas as práticas que coloquem em risco sua saúde, sua sobrevivência ou provoquem extinção das espécies” (artigo 2º), nesse sentido compatível com o dever constitucional do poder público em proteger os animais, conforme artigo 225, § 1º, VII da Constituição e artigo 237, § 1º, VIII da Constituição Estadual do Piauí.
Apesar de não declarar que animais são sujeitos de direitos, o reconhecimento de que animais têm direitos aparece em alguns dispositivos da lei nova: artigos 3º, XXI (guarda responsável), 5º, I (respeito aos direitos animais na política estadual de proteção à fauna silvestre e aos animais domésticos) e 11, parágrafo único (direito à liberdade natural dos animais silvestres).
No Código revogado, a menção a direitos animais aparecia em apenas um artigo (artigo 4º, parágrafo único, quanto ao direito à liberdade natural dos silvestres).
Em termos de disposições específicas, a lei do Piauí contempla muitos dispositivos semelhantes aos Códigos de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba, Roraima e Amazonas, como a proteção das integridades física e psíquica, da saúde e da vida dos animais, como primeira diretriz na nova política (artigo 2º, I), a proibição da caça (artigo 31), um sistema normativo de tutela responsável dos “animais de companhia” (artigos 32 a 42), com isso duplicando o número de dispositivos legais em comparação com o Código revogado.
Um ponto de destaque na lei piauiense: a proibição da realização de testes em animais para desenvolvimento, experimentos e produção de cosméticos, produtos de higiene pessoal, perfumes e seus componentes (artigo 79).
Aparentemente, a nova lei é melhor que a anterior (do Código), ainda que nada mais afirme, expressamente, sobre a senciência animal e as cinco liberdades do bem-estar animal.
Lei de Direito Animal de São Paulo
São Paulo, pela Lei 11.977/2005, instituiu o seu Código de Proteção dos Animais, dentro das características das primeiras leis estaduais de proteção animal, mas enfrentou desde logo a resistência da Federação da Agricultura do estado, que ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra vários dispositivos – especialmente os que tratavam da proteção de animais explorados economicamente –, os quais acabaram sendo suspensos por medida cautelar deferida pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2005, encontrando-se os autos suspensos até hoje, sem julgamento de mérito [6], ante a pendência da ADI 3.595, no Supremo Tribunal Federal, proposta na mesma época e impugnando a mesma lei, sem qualquer decisão monocrática ou colegiada até o momento [7].
Não obstante, o estado de São Paulo aprovou agora a Lei 17.972/2024, criando um regime jurídico mais rigoroso para a criação de cães e gatos com fins econômicos, bem como para a comercialização de indivíduos, com diversas limitações (artigos 4º a 10).
Nessa lei, que seria considerada não-animalista ou, com um olhar mais benevolente, contingencialmente animalista, dado que estabelece requisitos mais severos para as atividades econômicas envolvendo cães e gatos, atuando como contramarcha dessas atividades, foram incluídos alguns dispositivos tipicamente de Direito Animal.
Na linha inaugurada por Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás, a nova lei paulista reconhece o direito à vida de animais domésticos, declarando cães e gatos como seres sencientes.
O artigo 3º da nova lei paulista é bastante claro:
“Art. 3º A proteção, a saúde e o bem-estar de cães e gatos domésticos têm por fundamentos:
I – a proteção e o direito à vida dos animais domésticos;
II – os princípios do bem-estar animal e da saúde única;
III – a proteção e o equilíbrio do meio ambiente;
IV – o reconhecimento dos cães e gatos como seres sencientes dotados de natureza biológica e emocional, passíveis de sofrimento;
V – o controle populacional dessas espécies;
VI – o estímulo à criação ética e à posse responsável de cães e gatos.”
Muito importante a atribuição do direito à vida para os animais domésticos, especialmente para cães e gatos, porque isso reforça a capacidade jurídica plena dessas espécies animais [8]. A garantia do direito à vida é apenas a porta de entrada de uma série de direitos subjetivos que esses animais possuem, com base em outras fontes normativas.
Lei de Direito Animal do Distrito Federal
Vale a pena transcrever, logo de início, o inteiro teor da Lei 7.535, de 18 de julho de 2024, do Distrito Federal:
“Art. 1º O Distrito Federal reconhece os animais não humanos como seres sencientes, passíveis de dor e sofrimento, que fazem jus à tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos, ressalvadas as exceções previstas em legislação específica.
Art. 2º São objetivos fundamentais desta Lei:
I – a afirmação dos direitos dos animais não humanos e sua proteção;
II – a construção de uma sociedade consciente e solidária;
III – o reconhecimento de que os animais não humanos possuem natureza biológica e emocional e são seres sencientes, passíveis de dor sofrimento.
Art. 3º É vedado o tratamento dos animais não humanos como coisa.
Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 5º Revogam-se as disposições em contrário.”
A nova lei distrital é inteiramente animalista.
Reconhece, universalmente, que os animais são seres vivos sencientes (artigo 1º, caput e artigo 2º, III), titulares de direitos (artigo 2º, I), dentre os quais o direito à tutela jurisdicional adequada (artigo 1º, caput) e que não são coisas (artigo 3º). Ainda que não declarados, pode-se extrair dessa lei os princípios da dignidade animal e da universalidade (artigos 1º, 2º e 3º).
Essa lei tem como fonte material o PL federal 6.054/2019 (“animal não é coisa”), ainda que sem expressar que animais são sujeitos despersonificados de direitos, nem a sua natureza jurídica sui generis, afastando-se das leis do Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, que adotaram o padrão de redação desse projeto de lei federal. Não obstante, o artigo 2º da lei distrital replica o artigo 2º do PL 6.054/2019, o que não encontra precedentes em outras leis estaduais.
A Lei 7.535/2024, do Distrito Federal, é mais uma importante fonte normativa do Direito Animal, não apenas para consolidar a autonomia científica desse novo ramo jurídico, mas, sobretudo, para orientar as novas políticas públicas distritais para a proteção da dignidade animal e para gerar novas bases para a judicialização do Direito Animal, especialmente das demandas reparatórias de danos animais.
Em tempos de revisão e atualização do Código Civil brasileiro, com o anteprojeto da comissão de juristas já apresentado ao Senado, essas novas leis animalistas podem servir de boas fontes de inspiração.
[1] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 56.
[2] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais, cit., p. 63-76; 90-95.
[3] STF, Pleno, ADI 4983, relator ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.
[4] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula (coord.). Comentários ao Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba: a positivação dos direitos fundamentais animais. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2024.
[5] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais, cit., p. 85-113.
[6] TJ-SP, Órgão Especial, ADI 9028836-54.2005.8.26.0000, distribuída em 7/10/2005, com medida cautelar deferida em 11/10/2005.
[7] STF, Pleno, ADI 3.595, relator atual ministro Nunes Marques, distribuída em 10/10/2005.
[8] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais, cit., p. 212-214.