Em noites quentes nas praias do Rio de Janeiro há aventura, perigo e até poesia. Mistério e desafio em forma de perereca. Não uma perereca qualquer, mas uma que bebe néctar, se alimenta de flores, supera obstáculos com 20 vezes a sua altura e pode ser o primeiro caso de um anfíbio polinizador do mundo.
Um sapinho que só existe nas restingas da Mata Atlântica do Estado do Rio de Janeiro, de Paraty a Rio das Ostras, e um comportamento jamais visto na Terra, mesmo acontecendo num dos litorais mais densamente ocupados e movimentados do Brasil.
Do tamanho de um botão de rosa, o anfíbio fluminense causou comoção suficiente para virar assunto de artigo científico, merecedor de nota na prestigiosa revista Science.
Confira imagens da perereca polinizadora jardineira
Altamente energético, puro açúcar, o néctar, ao que tudo indica, serve combustível para alimentar incansáveis cantorias de amor, durante a estação de acasalamento, explica o biólogo Carlos Henrique de Oliveira Nogueira, principal autor do estudo, publicado originalmente na revista científica Food Webs.
Nogueira fez a descoberta em restingas das praias de Búzios, durante estudos para seu mestrado sobre anfíbios na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Ele e um colega monitoravam outras espécies, quando lhe chamou atenção um exemplar de Xenohyla truncata em inusitado comportamento.
A espécie conhecida no exterior como sapinho-arborícola- de-Izecksohn e, no Brasil, de perereca-comedora-frutos já não tinha hábitos muito habituais para um sapo. Pererecas, rãs e sapos — os anfíbios do grupo dos anuros — são essencialmente carnívoros, adoram um inseto.
Mas, como indica o nome popular brasileiro, essa perereca gosta de frutas. Mas, não apenas delas, come pétalas de flores. E, descobriram Nogueira e seus colegas, também suga néctar. Possivelmente, se trata do primeiro anfíbio polinizador do mundo.
Pois, ao sugar néctar, o pólen se gruda em suas costas úmidas, naturalmente pegajosas. E, ao pular de flor em flor em busca de mais néctar, espalha pólen. Para comprovar definitivamente a honra de ser incluída no seleto grupo dos polinizadores, a perereca precisará ser alvo de mais estudos, mas a descoberta por si só já chamou a atenção dos especialistas. Polinizadores são extremamente importantes para o ambiente.
A perereca que bebe néctar cobiça sobretudo a flor-do-leite (Cordia taguahyensis), espécie que desabrocha à noite e também é nativa da Mata Atlântica. Mas para chegar até ela, que pode alcançar quatro metros, o anfíbio de 5cm por vezes pode ser obrigado a escalar o equivalente a até 20 vezes a sua altura. O que para um ser humano seria o mesmo que escalar um prédio de dez andares.
Ela despende tanto esforço porque a recompensa é maior ainda. O néctar compensaria o sacrifício e ainda a proveria de reservas. Estas, supõem os cientistas em seu artigo, podem ser usadas para sustentar a cantoria dos machos na estação reprodutiva, mas também em disputas por territórios. Para as fêmeas, seria empregado na produção de óvulos.
Nogueira supõe que a perereca passou tanto tempo despercebida por ter hábitos noturno e esconderijo perfeito. Ela vive no interior de bromélias. Lá no fundo dessas flores, está sempre úmido e escuro. Há abrigo de predadores e do calor inclemente do sol, que pode ser letal para os anfíbios, que respiram pela pele e precisam mantê-la sempre fresca e úmida.
Quem atravessa as restingas mal nota as bromélias e, menos ainda, as pequenas criaturas de pele alaranjada que vivem dentro delas. Mas é só a noite chegar, que os sapinhos começam a deixar seu refúgio e saem em busca de flores. O comportamento foi observado na flor-do-leite e numa íris exótica, mas Nogueira acredita que ele pode se alimentar do néctar de outras espécies.
A perereca das flores está longe de ser bem conhecida. Foi descoberta em 1959, quando as restingas ainda cobriam parte mais considerável do litoral. Agora, assim como seu habitat, essa pequena perereca corre o risco de extinção.
Sabe-se que reproduz em lagos temporários, mas como até esses estão desaparecendo, tragados pela ocupação desordenada e a especulação imobiliária, o mundo pode ter que dizer olá e até nunca mais em curto espaço de tempo para uma das espécies mais curiosas descobertas nos últimos anos.
— Essa descoberta mostra o quanto ainda sabemos pouco sobre nossa biodiversidade, destruímos o que não conhecemos. Até regiões superpovoadas nos reservam surpresas — frisa Nogueira.
O primeiro nome da espécie homenageia Eugenio Izecksohn (1932-2013), um dos maiores herpetologistas (especialistas em répteis e anfíbios) do Brasil, descobridor de alguns dos menores sapos do mundo, também nativos do Rio de Janeiro. O professor Izecksohn ficaria orgulhoso da perereca que espalha flores aonde quer que vá.
Fonte: O Globo