Numa savana de contraplacado, sete animais de palco deixam-se observar pelos turistas acidentais da plateia – mas o contrário também pode ser verdade. Zoo, de Victor Hugo Pontes (dias 27 e 28 em Lisboa), reabilita o instinto como sistema operativo da nossa humana animalidade.
Antes de desembarcarem nesta savana de contraplacado com as suas mochilas impermeáveis e os seus cobertores tigrados de loja dos 300, o coreógrafo Victor Hugo Pontes e os sete animais de palco que com ele estão em safari desde ontem no Teatro Nacional São João (Diletta Bindi, Francesca Bertozzi, Marco da Silva Ferreira, Paulo Mota, Pedro Rosa, Valter Fernandes e Vítor Kpez) passaram dias e dias no lugar maldito onde o ensaísta John Berger acredita que o homem enterrou o animal (não necessariamente de palco) que foi ao longo de uns quantos milénios. Muito do que agora temos para ver em Zoo vem dessa experiência de imersão em dois jardins zoológicos – o Zoo da Maia e o Jardim Zoológico de Lisboa. Não por aquilo que Victor Hugo Pontes lá foi encontrar, mas por aquilo que lá foi perceber que se perdeu: “Entrei nesta peça à procura dos instintos primários dos animais – que é justamente o que eles perdem quando chegam ao jardim zoológico.”
Visto por esse lado, o de uma perda irreparável – “Os jardins zoológicos onde as pessoas vão para encontrar animais são, de facto, um monumento à impossibilidade desse encontro – são o epitáfio de uma relação tão velha quanto o homem”, escreve John Berger em Why look at animals? -, Zoo tem um lado terminal. Mas além de olharem para aquilo que já fomos, os sete corpos que Victor Hugo Pontes pôs nesta savana também olham para aquilo que ainda podemos voltar a ser – e, sobretudo, olham para nós, que olhamos para eles, até ao ponto em que o conforto da plateia, o conforto do anonimato, parece confundir-se com o desconforto do palco, o desconforto do protagonismo. É o ponto em que já não estamos no jardim zoológico (ou no safari, como turistas acidentais de mochila impermeável), estamos no teatro: e então a pergunta passa a ser por que raio olhamos para eles, para estes (ou para quaisquer outros) animais de palco?
É uma pergunta que obriga Victor Hugo Pontes a voltar ao jardim zoológico: “Como coreógrafo, interessava-me muito explorar a fisicalidade dos animais. Puxei pelo jardim zoológico porque queria ir pelo lado da artificialidade: o zoo é um habitat encenado, exatamente como um teatro. Uma ficção, no fundo.” E exatamente como num teatro é uma ficção à atenção dos espectadores: “Num caso como noutro, está em causa um fenômeno de observação. Mas há uma questão aqui: quem observa quem? Mais do que observar os animais, eu queria que nos observássemos a nós no nosso lado mais primitivo e mais instintivo: acho que aquilo que quero dizer é que pensamos de mais. Às vezes é melhor agir primeiro e pensar depois.” O que tanto vale para a vida como para os ensaios: “O que eu queria que acontecesse nesta peça era que os bailarinos fossem levados quase a um estado de irracionalidade: que não pensassem, fizessem.”
Anulação
Deambular, rondar, trepar, saltar, cair, atacar, fugir, predar, comer, acasalar, talvez matar, talvez morrer. Eis o que se faz na savana de contraplacado de Victor Hugo Pontes, eis o que não se faz na savana de cimento do jardim zoológico. Para os animais, diz o coreógrafo, é um lugar de anulação – um lugar de cegueira. “São muito importantes na peça os momentos de paragem, em que eles se observam uns aos outros e observam o público. Nos zoos às vezes também conseguimos que o olhar dos animais enjaulados se cruze com o nosso. Mas eles estão tão anulados que temos de bater nos vidros ou de fazer muito barulho para que reajam. São animais sem instintos. Não têm de agir, só têm de estar. Isso levantou-me imensas questões enquanto estava a fazer a peça: o teatro vive da ação e nos zoos não há ação. Tive de a provocar.”. Como um domador. Dos bailarinos e dos espectadores: “Acabou por ficar este dispositivo de visita contínua em que os animais vão passando a pessoas e as pessoas vão passando a animais – um dispositivo que nos obriga a gerir essa passagem também em nós”, continua.
Além dessa passagem, Victor Hugo Pontes teve (tem tido) de gerir outra: a do teatro à dança. Para quem como ele começou num território onde ainda havia palavras, Zoo é quase um resumo do caminho percorrido até aqui (da tradição textual até a um estado de pura fisicalidade, passando pela experiência transformadora da insistência até à exaustão das formas canônicas da dança clássica que foi A Ballet Story, melhor espectáculo de dança de 2012 para os críticos do PÚBLICO e do Expresso). Mas o teatro não desapareceu sem deixar vestígios: aqui, sobrevive sobretudo nas cenas mais diretamente inspiradas pela residência nos dois jardins zoológicos. “A cena do leão marinho é uma imitação relativamente fidedigna do espectáculo do Zoo da Maia. Mas no estúdio procurámos afastar-nos da cópia. Interessava-nos aquele estado em que já não se percebe se o bailarino está a fazer de animal ou de ser humano. Sendo que isto é paradoxal, porque o ser humano nunca deixa de ser animal…”, resume o coreógrafo.
Dos dias no jardim zoológico também ficou a desolação de estar perante um espectáculo não de vida mas de morte. “Há uma solidão imensa naqueles animais – normalmente são exemplares únicos, e vêem-se subitamente atirados para aquele espaço de protagonismo. E depois há uma apatia induzida pela rotina. Os passos que eles dão na jaula estão marcados no chão. É o mesmo caminho dia após dia. Não há como não ficar impressionado. São animais a quem tiraram a verdade. Já não são o que são, são o que é esperado que sejam.” E contra isso nada a fazer a não ser talvez dançar primeiro, e pensar depois. Ou ainda mais a sério: nem sequer pensar.
Fonte: Publico