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AMEAÇADOS

Patrimônios brasileiros estão sob risco com crise climática: "Parte já foi afetada", alerta especialista

Bens culturais e imateriais tombados pelo Iphan, memórias e comunidades indígenas e quilombolas são cada vez mais ameaçadas por fenômenos extremos; ainda não existe um mapeamento de patrimônios vulneráveis

4 de janeiro de 2025
Alice Andersen
12 min. de leitura
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Casa de Cultura Mario Quintana afetada pelas enchentes em Porto Alegre. Foto: Camila Diesel / Ascom Sedac / imagem editada pela Fórum

O ano de 2024 ficou marcado por uma sucessão de eventos climáticos extremos no Brasil, amplamente abordados devido à destruição que causaram. Desastres que também deixaram marcas profundas na cultura do país. Embora tenham sido destaque nas retrospectivas de fim de ano, os efeitos desses fenômenos sobre os patrimônios culturais e a memória coletiva receberam pouca atenção. Sucessivos casos contribuíram para perdas históricas e culturais nos últimos anos.

Em diferentes reportagens ao longo do ano passado, destacamos os alertas aos desastres climáticos, como as chuvas torrenciais no Rio Grande do Sul atingiram bens culturais, e as extensas queimadas que devastaram o Pantanal e o Cerrado, patrimônios reconhecidos pela UNESCO. Além da seca na Amazônia, que se prolongou por dois anos consecutivos e também redesenhou o cenário de escassez hídrica histórica com impactos sobre os costumes de ribeirinhos e pescadores.

Esses eventos extremos não são casos isolados. Nas últimas décadas, os patrimônios materiais e imateriais protegidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) têm sofrido com as consequências das mudanças climáticas. Um exemplo emblemático ocorreu em 2011, em São Luiz do Paraitinga (SP), onde edifícios históricos com mais de dois séculos foram destruídos por uma tempestade. Doze anos depois, o município voltou a enfrentar alagamentos que danificaram patrimônios tombados.

No ano passado, o Rio Grande do Sul registrou impactos severos em 41 museus, 52 centros culturais, 80 aldeias indígenas e 57 bibliotecas datadas dos séculos 19 e 20. Além disso, cidades como Xapuri, no Acre, e Cidade de Goiás, em Goiás, também sofreram com enchentes e alagamentos, eventos que, embora frequentes, têm ocorrido com maior intensidade.

Desastres ambientais semelhantes atingiram outros estados. Em 2022 e 2023, Petrópolis e Teresópolis, na região Serrana do Rio de Janeiro, e Ouro Preto, em Minas Gerais, enfrentaram deslizamentos de terra e chuvas torrenciais que danificaram patrimônios seculares. Fora a corrosão de monumentos, sítios arqueológicos e obras de arte ao ar livre que também se agravou devido às variações bruscas de temperatura e chuvas ácidas.

Luiz Marques, professor de Ciências Sociais pela Unicamp e autor de “O Decênio Decisivo: Propostas para uma Política de Sobrevivência” (Elefante, 2023) e “Capitalismo e Colapso Ambiental” (Unicamp, 2018), afirma que o aquecimento é o responsável por intensificar as enchentes, os ventos e a temperatura global, e que o Brasil é um dos países mais vulneráveis.

“Cidades do litoral norte de São Paulo, além de Petrópolis, Teresópolis no Rio de Janeiro e tantas outras no Rio Grande do Sul já tiveram parte significativa de seu patrimônio construído afetada pelos fenômenos e isso não vai parar”, reitera o pesquisador à Fórum.

Além das enchentes e do calor, a elevação do nível do mar 

Para Marques, outro impacto iminente sobre o patrimônio cultural, tanto no Brasil quanto no mundo, vai ser a elevação do nível do mar. “Com mais de 10 mil km de sua linha costeira, o Brasil é um país excepcionalmente suscetível a essa elevação”, diz o professor.

Cidades como Rio de Janeiro, Recife e Santos, por exemplo, que abrigam um vasto patrimônio histórico e arquitetônico, estão enfrentando os impactos da crise climática de forma especialmente grave. No Rio, o nível do mar subiu 13 cm entre 1990 e 2020, a uma taxa 30% superior à média global, e pode aumentar mais 21 cm até 2050.

Em Santos, a elevação pode alcançar até 27,7 cm no mesmo período, o que resultaria em inundações em áreas da cidade. Um estudo recente da Organização das Nações Unidas (ONU) através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Human Climate Horizons, aponta que até 2050, 5% da área do Rio e de Santos estará submersa. Além disso, o aquecimento global agrava as enchentes, intensificando ainda mais os riscos para essas cidades.

“Dada a formação histórica do país, 60% de sua população vive em 279 municípios litorâneos no Brasil, sendo 12 capitais dos estados brasileiros. Nesses municípios, grande parte dos quais fundados durante o período colonial, concentra-se grande parte do patrimônio construído brasileiro. Parte dessa população vive em casas ou convive com construções históricas que serão regularmente inundadas nas marés altas e sobretudo em períodos de ressacas”, destaca o especialista.

Falta de políticas de preservação e mitigação

Ainda segundo Marques, poucas são as políticas de conservação e adaptação implementadas ao longo das décadas para proteger não apenas os patrimônios materiais no Brasil, mas também as práticas culturais ou imateriais que dão vida à identidade cultural, e que podem se perder diante da vulnerabilidade do clima.

“A primeira prática cultural que vem à mente é, naturalmente, o carnaval. Uma festa que ocorre em pleno verão, de que participam ativamente milhões de pessoas durante dias ou semanas em algumas cidades do Brasil e que se caracteriza por danças ao ar livre, algumas delas muito intensas como o frevo. Nesse cenário, o carnaval por exemplo, será nas próximas décadas uma atividade de risco cada vez mais alta para as pessoas”, informa.

A crise climática e as práticas culturais estão intimamente ligadas, mas a conservação dos patrimônios ainda não se resume apenas à preservação.

“O contexto das mudanças climáticas globais e do patrimônio cultural também segue uma hierarquia que prioriza poder, política e interesses, relegando o potencial das ações de preservação na mitigação climática em favor de maior destaque na mídia aos impactos das mudanças sobre os bens culturais”

O trecho é de um estudo conduzido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), intitulado “Mudanças climáticas, riscos ao patrimônio cultural e ambiental, políticas públicas e o papel das redes colaborativas: um olhar sobre o panorama brasileiro contemporâneo”, e publicado em 2021. A pesquisa pode ser acessada neste link.

Para o professor e especialista em mudanças climáticas, a adaptação e prevenção têm limites bem estreitos numa situação como a nossa. Em 2024, o aquecimento médio global já superou 1,5 o C em relação ao período pré-industrial e está agora evoluindo à taxa de cerca de 0,3 o C por década, o mais quente em 63 anos.

“Portanto, é preciso combater a causa do aquecimento global. E no Brasil, a causa principal é o desmatamento e a pecuária bovina, em suma, o agronegócio, responsável por cerca de 75% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa. É preciso substituir o modelo agroexportador brasileiro pelo modelo proposto pelo MST, de uma agricultura local, produtora de alimentos saudáveis e sem agrotóxicos”, completa Luiz Marques.

Fórum, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), consultou o Iphan sobre a existência de um mapeamento de risco relacionado à preservação de patrimônios e bens culturais por região, considerando as mudanças climáticas, e quais seriam os mais vulneráveis no país. Até o momento, o governo não possui um estudo completo e detalhado sobre esses aspectos. De acordo com o órgão, “a compilação de dados precisos sobre o tema se encontra em fase de desenvolvimento pela área técnica”, disse em resposta. (A nota completa pode ser conferida ao final da reportagem).

Ao todo, são 2.513 bens catalogados e 984 patrimônios tombados pelo Iphan em todo o território brasileiro desde 1938, conforme a última atualização do painel de dados abertos fornecido pelo instituto à Fórum, de outubro de 2024. (A planilha completa também pode ser visualizada ao final da reportagem).

A data dos tombamentos começou um ano após a instituição da Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, o primeiro instrumento legal de proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro e o primeiro das Américas. Todos os anos ela é atualizada para incluir bens ainda não reconhecidos pelo órgão, no entanto, ainda não há informações relativas à vulnerabilidade dos acervos ao clima.

Relembre patrimônios culturais afetados das cidades citadas no início desta reportagem:

Rio Grande do Sul, 2024

As cheias dos dias 3 e 4 de maio de 2024 invadiram o centro histórico da cidade, alcançando a Praça da Alfândega, um patrimônio tombado pelo Iphan, que abriga o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), o Memorial do Rio Grande do Sul, ambos equipamentos estaduais, e o Farol Santander, de propriedade privada, todos construídos no início do século 20. Além de comunidades indígenas e quilombolas.

A inundação também afetou a Rua dos Andradas, onde se localiza a Casa de Cultura Mario Quintana, o principal centro cultural de Porto Alegre, instalado no antigo Hotel Majestic, construído em 1933. Os funcionários da Livraria Taverna, situada no térreo do edifício, passaram dias e dias tentando proteger os livros, movendo-os para locais mais seguros.

Outro local afetado na Rua dos Andradas foi o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. O acervo do museu foi transferido para andares superiores do prédio, embora ainda se soubesse à época até onde o nível da água poderia subir. O Museu Militar do Comando Militar do Sul, também situado na área, estava na zona de risco.

A Pinacoteca Aldo Locatelli, que abriga mais de mil obras de arte, é localizada no subsolo do prédio da Prefeitura de Porto Alegre, e ficou quase totalmente submersa nas águas do Guaíba. Nessa reportagem da Fórum, é possível conferir outros patrimônios e comunidades atingidos pelas enchentes de maio de 2024. Vale destacar que a região segue sofrendo com fortes temporais e enchentes.

Petrópolis, 2022

Em fevereiro de 2022, as intensas chuvas que atingiram Petrópolis não causaram somente uma expressiva perda humana, mas também cultural. A Casa da Princesa Isabel e o Palácio Rio Negro estão entre os prédios históricos que sofreram danos à época. Embora o Museu Imperial, um dos símbolos culturais da cidade, tenha escapado de danos diretos, permaneceu fechado em respeito às vítimas. Dois edifícios auxiliares, utilizados como refeitório e vestiário, foram interditados após um deslizamento no terreno adjacente comprometer sua estrutura.

A Casa da Princesa Isabel foi a mais afetada. Um muro desabou, destruindo parte de uma exposição sobre a colonização germânica. Além disso, um automóvel, arrastado pela enchente, invadiu os jardins do local. No Centro Histórico, o Palácio Rio Negro foi mais uma vítima das chuvas intensas. O piso térreo foi inundado, enquanto deslizamentos de terra comprometeram o terreno superior.

O edifício principal e o acervo permaneceram intactos, com os móveis sendo transportados para o andar superior para proteção. Funcionários do palácio foram obrigados a pernoitar no local, isolados pelas enchentes e deslizamentos que impediram seu retorno às residências.

Xapuri, no Acre, 2024

A Casa de Chico Mendes em Xapuri, patrimônio do Iphan, é constantemente atingida pelas cheias constantes do Acre. Em março do ano passado, o local onde viveu o líder acreano e que reúne acervo histórico sobre o ofício dos seringueiros no estado ficou coberto de água após as fortes chuvas que castigaram a cidade.

Com a previsão de que o nível do Rio Acre ultrapassaria os 12 metros, a equipe executou o plano de contingência, garantindo a segurança do acervo e da mobília, que foram transferidos para o campus da Universidade Federal do Acre (Ufac) em Xapuri. A Casa de Chico Mendes, reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro desde 2007, está situada a apenas 100 metros do rio e próxima a uma floresta densa, fatores que a tornam vulnerável tanto a inundações quanto a incêndios florestais.

Cidade de Goiás, 2024

O município de Goiás, situado na mesorregião do Rio Vermelho, enfrenta desafios recorrentes relacionados a deslizamentos de terra e enchentes. Com 3.108,018 km² de extensão e uma população de cerca de 24.793 habitantes, as condições geológicas e a localização geográfica aumentam sua exposição a esses riscos. O clima típico do Cerrado, com uma estação chuvosa e outra seca, também contribui para os problemas ambientais da região.

No bairro Vila Cristina, os deslizamentos de terra são preocupação constante. A proximidade de habitações com cortes no terreno apresenta sinais evidentes de instabilidade, como rachaduras nas construções, afundamento do solo e árvores inclinadas, indicando movimentações de massa e perigos para patrimônios históricos do município.

As enchentes, por sua vez, têm como principais vetores o Rio Vermelho e o Córrego Manoel Gomes, que frequentemente impactam o centro histórico da cidade. Grandes alagamentos ocorrem em ciclos de aproximadamente 10 anos, trazendo prejuízos significativos. Ao longo de 31 anos, Goiás passou por 47 episódios de enchentes e inundações.

São Luiz do Paraitinga, 2010, 2023 e 2024

As chuvas de 2011 deixaram marcas profundas no patrimônio histórico de São Luiz do Paraitinga, em São Paulo, destruindo estruturas da Igreja Matriz, construída no século XIX. A igreja era um dos principais pontos turísticos da cidade. Reconstruída em 2014, as características arquitetônicas da igreja, com cerca de 200 anos de história, foram preservadas, permitindo aos fiéis visitar um espaço dedicado à exposição das ruínas da parede de taipa de pilão da antiga edificação.

Em janeiro de 2010, uma enchente provocada pela subida das águas do Rio Paraitinga deixou 9 mil moradores desabrigados e causou danos a cerca de 300 edificações. O patrimônio histórico da cidade, incluindo a Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, a Capela das Mercês e o prédio da biblioteca, foi completamente destruído. São Luiz do Paraitinga era a única cidade do Estado a conservar um grande número de construções do século 19 em bom estado, sendo essas edificações essenciais para a economia local, que depende principalmente do turismo.

Foram investidos  R$ 17 milhões para a restauração da igreja, um custo superior se já estivesse prevendo medidas de preservação contra a crise climática. A revitalização foi feita naquele ano pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) e da Fundação Dom Couto.

Ouro Preto, em Minas Gerais, 2010 e 2022

Em janeiro de 2022, o deslizamento de terra no Morro da Forca em Ouro Preto danificou dois casarões tombados, que estavam fechados há cerca de uma década. Um dos imóveis, de dois andares, era o Solar Baeta Neves, considerado o primeiro edifício neocolonial do município. O restauro foi finalizado em 2010, com recursos do governo federal, mas o casarão foi desocupado anos depois por estar em uma área de risco, tendo sido parcialmente atingido por outro desmoronamento.

Fonte: Revista Fórum

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