Passear com seu amigo canino pode e deve ser um desses momentos de felicidade frugal em nosso cotidiano. É claro que na maioria das vezes em que é chegada a hora do passeio somos tomados pela preguiça, estamos absolutamente sem tempo ou não gozamos de uma condição física muito boa (um simples resfriado pode ser um exemplo), mas lá vamos nós garantir aquele momento de tanta alegria para eles, aquele momento pelo qual anseiam todos os dias de suas vidas. Eles sabem o horário direitinho e ouse você não levá-los pela guia, rua afora, que logo vai ter que enfrentar uma “cara feia” ou no mínimo decepcionada… Embora sempre movida pela ética de satisfazer uma necessidade que é deles, confesso que tenho passado bons momentos durante os quais é possível romper a teia dentro da qual estamos permanentemente emaranhados e desfrutar das belezas singelas que nos escapam aos olhos na correria do dia-a-dia. Eles nos fazem parar debaixo de amoreiras e pitangueiras carregadas de frutas; param “do nada”, o que nos permite admirar a delicadeza das minúsculas e efêmeras flores que nascem de plantas que chamamos de “mato”; nos obrigam a sentar diante de coisa alguma e isso provoca uma ruptura no tempo – o faz parar – e temos uma sensação de plenitude e de eternidade porque a sucessão de pensamentos que normalmente povoa nossas mentes não encontra eco no tempo sem relógio, no tempo do farfalhar das folhas no chão das florestas, do voo da gralha azul e do vento soprando na relva.
O inferno são os outros…
Mas esses momentos prazerosos podem também dar lugar a situações estressantes ou até mesmo a discussões, dependendo que quem cruza nosso caminho. Todos concordam que, ao passear com seu cão, deve-se levar um saquinho, pá, ou qualquer outro dispositivo que garanta que o excremento do seu melhor amigo terá uma destinação conveniente. E qualquer pessoa tem o direito de ficar indignada se, ao sair de casa, pisar num desses “objetos” malcheirosos e aderentes, sendo que a situação é ainda pior no caso de estabelecimentos comerciais, igrejas ou clubes, onde as pessoas não têm como se livrar de pronto de tal tipo de sujeira. No entanto, a magnitude da importância dada aos excrementos de cães às vezes toma uma proporção que chamaria de doentia. Já fui agredida verbalmente por pessoas que me conhecem há mais de vinte anos por causa de um montinho de fezes que sequer era de minha cadela! Certamente os motivos para tal animosidade eram outros… O interessante é que a maioria dos lugares por onde se passeia por aqui é constituída de espaços abertos – ou seja, sem muros – e muitos cães andam desacompanhados. Mas como os “donos” [1] de tais animais não se encontram por perto, as pessoas neuróticas acabam brigando justamente com quem leva saquinhos para recolher ou enterrar as fezes de seus animais e praticam uma guarda responsável. É mais ou menos como na fábula de La Fontaine intitulada “O lobo e o cordeiro”. Já brigaram comigo também por eu estar enterrando as fezes de meu cão numa “calçada” de terra coberta de entulho… Enterrar as fezes do animal é a coisa mais correta a fazer, desde que em local apropriado, claro, pois trata-se de uma devolução de nutrientes à natureza (tal premissa não vale para corpos d’água em geral) onde o material é mineralizado, enriquecendo o solo. Dispor de fezes em saquinhos plásticos para posterior coleta por parte de serviços de limpeza urbana é uma boa opção para cidades e regiões urbanizadas onde não é mais possível encontrar áreas sem asfalto ou concreto.
O espírito de um passeio com seu cão: diferentes visões
Uma coisa que percebi depois de um tempo ouvindo relatos semelhantes aos que mencionei é que as pessoas que não gostam de animais, ou acham que gostam [2], pensam que passeamos com eles para que sujem propositadamente as calçadas e casas alheias e preservem limpas as nossas. Não lhes passa pela cabeça que os passeios são feitos pelo animal. Mentes estreitas, mesquinhas, egoístas. Minha cadela, por exemplo, tem artrose desde filhote e precisa caminhar diariamente para não ficar entrevada. Faço isso todos os dias, quer chova ou faça sol, quer esteja cansada ou não depois de um dia de trabalho. No que tange aos excrementos de nossos melhores amigos, sugiro que quem acusa o cão de alguém de ser responsável por sujar uma calçada tenha certeza do que está falando. E aconselho também que guarde um pouco de sua indignação para lutar contra questões muito mais importantes, como a presença de alguns ingredientes que integram a comida malsã e outros produtos que consumimos cotidianamente como agrotóxicos, aditivos químicos, elementos transgênicos e até mesmo nanopartículas. Mas como tais ingredientes são invisíveis, inodoros e insípidos, e muitas vezes vêm cuidadosamente escondidos em formas e embalagens bem desenhadas e perfumadas, vale o ditado: “o que os olhos não veem o coração não sente”.
Quem ama passeia
Tem sido comum que eu saia para passear com minha cadela e, ao longo do caminho, seja acompanhada por mais dois ou três agregados, soltos. É que eles não resistem à tamanha alegria e vêm junto…O que fazer, enxotá-los? Bem que tento, mas sem sucesso. As pessoas não compreendem o quanto é maravilhoso para eles simplesmente passear. Sobretudo para os que estão confinados em espaços exíguos, tal “migalha” – que é um passeio que às vezes não passa de meia hora – vale ouro. Mas mesmo para os que têm toda liberdade esse é o momento em que podem interagir com outros da mesma espécie e brincar de luta, correr a todo pano, ou simplesmente apenas cheirar o outro. É o momento mágico em que dão rédeas aos seus instintos de se embrenhar pelo mato atrás de uma hipotética presa, ou de procurar ervas que mastigam para promover sua saúde. De uma forma ou de outra sempre se sentem poderosos e invencíveis ao ponto de desafiar, em seu doce afã de liberdade (e para nosso desespero!), um “Barra da Lagoa” ou “Joaquina” que atravessem os caminhos que julgam ser seus [3]. Esse é o mundo além dos portões de seus jardins. Nesse mundo são guiados por sons, odores e a satisfação inenarrável de passear com o líder da matilha.
Notas
[1] A palavra “dono” expressa nosso sentimento de posse, de propriedade, de domínio sobre os animais – essa parte senciente da natureza. É interessante lembrar que também os escravos humanos tinham “donos”.
[2] Algumas pessoas fazem do passeio com um cão um ato de narcisismo e de ostentação no qual exibem aquele cão de raça que conseguiram comprar (sic!) numa cidade onde pobres “vira-latas” e mestiços – os SRD (Sem Raça Definida) sofrem todos os tipos de maus-tratos e estão expostos a acidentes que, quando não tiram sua vida, deixam sequelas que precisarão amargar pelo resto de sua existência.
[3]: O “Barra da Lagoa” e o “Joaquina” são ônibus que circulam por lugares onde andamos.