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MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Pássaros da Amazônia estão encolhendo para se adaptar ao colapso do clima

Pelo menos 77 espécies apresentam mudanças em seus corpos, como resultado do aquecimento global provocado por ação de uma minoria de humanos, que ameaça também silenciar a maior floresta tropical do planeta

11 de fevereiro de 2025
Jaqueline Sordi
14 min. de leitura
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Arapaçu-bico-de-cunha. Foto: Thibaud Aronson | Wikimedia Commons

Há algo brutal acontecendo nas profundezas da Floresta Amazônica. Em meio às úmidas e densas matas primárias, onde o tempo desliza suavemente pelas copas das árvores centenárias e os sons da Natureza parecem intocados pelo homem, milhares de pássaros estão encolhendo. São pelo menos 77 espécies que, ano a ano, sofrem uma mudança em suas silhuetas.

Enquanto seus torsos diminuem, as asas se alongam, como que equipando-as para voar rumo a um futuro cada vez mais distante. Há uma força externa, invisível e incompreensível aos olhos desses seres, que invade o corpo deles e pode estar deixando marcas definitivas em seus genes. Uma força mais rápida e intensa do que aquela que vinha moldando-os lenta e suavemente ao longo do tempo.

Logo, é possível que essa nova força altere também a melodia de seus cantos, desorientando-os. Por fim, poderá fazer com que desapareçam, um a um. Sem que tenham a chance de se defender. Essa força se chama colapso climático. E ela é provocada por uma minoria de humanos, super-ricos acionistas das grandes corporações transnacionais, elites extrativistas locais, Parlamentos e governos que lhes servem.

Se pudesse, o solitário Arapaçu-bico-de-cunha, que já vive em um fragmento desse futuro sombrio, mandaria um alerta para os recôncavos da Floresta. Cada vento que não sopra, cada chuva que não cai, diria, é um aviso de que o planeta está aquecendo de forma descontrolada. Cada fração de aumento de temperatura, alertaria, é capaz de imprimir marcas definitivas em todos nós, seres da Floresta. Mutando-nos. Eliminando-nos.

O despertar coletivo

Os primeiros raios de sol ainda ensaiam penetrar por entre as densas copas das árvores quando a orquestra da Floresta começa a afinar seus vocais. Em meio ao chiado noturno das Cigarras e dos Grilos, o Ipecuá, um pequenino cinza-azulado de asas longas que adora repousar em arbustos, abre os olhos e dá o tom com um canto que é parte comando, parte aviso: é hora de acordar. Começa um novo dia na Amazônia, e em poucos minutos a Floresta inteira desperta. Por todos os lados, os coloridos das asas e as diferentes melodias se espalham pelo horizonte. Os Arapaçus-bico-de-cunha, pássaros de plumagem castanha, canto suave e olhos negros, não perdem tempo. Estão entre os primeiros a responder ao chamado. Se colocam a postos e aguardam o resto do bando para enfrentar os desafios e os prazeres de mais um dia na Floresta.

Naquela região de mata primária, longe da civilização, distante uns 70 quilômetros ao norte de Manaus, os Arapaçus e os Ipecuás não vivem sós. São pássaros de bando misto – grupos de aves de diferentes espécies que se reúnem já nas primeiras horas da manhã, formando um corredor único de vida que colore e reveste a paisagem verde da mata. Adotaram esse comportamento em comunidade para se proteger dos predadores e para ajudar uns aos outros a encontrar comida.

Assim que o bando todo desperta, ainda no lusco-fusco do amanhecer, começa a primeira revoada em busca do café da manhã. Percorrem juntos alguns quilômetros, olhos atentos e bicos afinados. Quem avista perigo entoa um som de alerta. Quem encontra alimento cantarola que chegou a hora de se refestelar. No cardápio estão os mais variados insetos, como Besouros e Moscas. Formigas e Cupins são os preferidos dos Arapaçus. Por horas, eles seguem uma rotina que é parte sinfonia, parte coreografia.

Essa dança só é interrompida nos períodos mais quentes do dia, quando o sol consegue penetrar de forma intensa na Floresta e o calor se torna insuportável. É então que todos procuram abrigo nas áreas mais baixas da mata. Se acomodam em galhos e repousam nos igarapés, silenciando ao som dos corredores de água. É como se toda a Floresta descansasse junto, suspendendo-se até o sol baixar. No final do dia, voltam à ativa, guiando uns aos outros pela multimelódica sinfonia dos cantos em busca de comida fresca.

Tem sido assim desde sempre por lá e por várias outras regiões da Amazônia. Os Arapaçus e seus companheiros compartilham a sabedoria milenar de uma existência em harmonia com seu território e com seus companheiros. Há pelo menos quatro décadas, porém, eles vêm compartilhando algo mais. Seus corpos estão encolhendo. Mudando, pressionados pelo clima mutante que consegue adentrar até mesmo as áreas da Floresta mais intocadas pelos não Indígenas.

É o que explica o biólogo checo Vitek Jirinec, pesquisador membro do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), sediado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus. Há mais de 40 anos, a iniciativa monitora dezenas de espécies de aves em uma mesma área de 43 quilômetros de Floresta conservada, no interior da Amazônia. O projeto, que foi iniciado em 1979 com a participação do renomado ambientalista Thomas Lovejoy, tem mostrado o impacto das mudanças climáticas no corpo e na vida desses animais, indicando um futuro nada otimista para os pequenos voadores.

A cada dia, a Floresta está mais quente, mais árida. E os voos, mais desafiadores. Na região da coleta dos dados, desde 1966 a temperatura se elevou pelo menos 1 grau Celsius durante a estação chuvosa e até 1,65 grau Celsius na estação seca. Quanto à chuva, houve um aumento de 13% na estação das cheias e 15% de redução durante a estiagem. Para os Arapaçus-bico-de-cunha, esse aquecimento representou, de 1980 a 2019, uma diminuição de 0,38 grama em média no peso e um acréscimo de 1,45 milímetro no tamanho das asas. “É como se a gente pudesse medir o aquecimento global no corpo de um passarinho. A diferença pode parecer pequena, mas essas aves são organismos perfeitamente ajustados ao seu ambiente, então essas mudanças tão rápidas e significativas impõem um risco às espécies”, alerta o cientista.

Ali, naquele manto verde floresta adentro, pássaros de bando misto têm vivido a angústia de uma existência incerta, imersos em um clima instável. Eles temem o futuro. Futuro esse que já chegou para o pequeno Glypho, um Arapaçu que vive no centro de Manaus. É de lá, onde a pressão dos humanos não Indígenas sobre a Floresta é ainda maior, que esse pequeno voador tenta entoar aos companheiros distantes sobre o silêncio que a solidão de um mundo cada vez mais quente impõe.

Ele está só

A cada manhã de estudo no fragmento de Floresta que circunda o campus da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o ornitólogo Stefano Avilla franze a testa de preocupação. A ausência da melodia abundante que encontra quando viaja para o interior da Amazônia aflige o pesquisador. Ela evidencia a presença do dramático futuro que o Arapaçu há tempos tenta denunciar com seu canto solitário. “Por aqui, não existe mais o bando misto. O canto do Glypho é um dos poucos que escutamos. E ao longo do tempo foi ficando cada vez mais difícil ouvir ele também. Às vezes passa o dia todo e a gente não escuta, não captura”, diz Stefano.

Glypho é o apelido carinhoso que o ornitólogo deu ao Arapaçu-bico-de-cunha – um diminutivo de seu nome científico, Glyphorynchus spirurus. Há anos, o pesquisador estuda essa pequena ave que mede cerca de 15 centímetros e cabe na palma da mão.

A espécie é monitorada por Stefano no projeto Biodiversidade nas Cidades, dentro da mata que envolve o campus da Ufam, na região central de Manaus, uma área que já sofre uma pressão muito mais intensa e direta do que chamamos “civilização”. Cercada por prédios, avenidas e construções, é considerada um dos maiores fragmentos de Floresta em perímetro urbano do mundo. Com cerca de 700 hectares, é também muito utilizada para avaliação dos impactos das ações humanas na Natureza da Amazônia. “É como se aqui a gente pudesse ver o que pode acontecer no resto da Floresta caso o desmatamento e a pressão do aquecimento e da urbanização não parem”, explica.

Nesse local, o Glypho aprendeu a conviver com a vantagem e com a sina de ser um sobrevivente. Espécie que consegue resistir a ambientes mais desafiadores, ele foi acompanhando, geração a geração, seus parceiros de bando sucumbirem às pressões externas. O calor em excesso, as perturbações na vegetação nativa e os ruídos da cidade eliminaram a possibilidade de vida de seus companheiros, deixando-o sozinho para despertar, voar, comer e se proteger. Hoje, não é mais o Ipecuá que o avisa sobre um novo dia. Hoje, o Glypho acorda em um silêncio sufocante.

Em pesquisa publicada na revista Oecologia em 2021, Stefano mostrou as mudanças no tamanho do corpo e no comportamento desta pequena ave de sub-bosque na floresta urbana. “A avaliação que estamos fazendo dos Arapaçus aqui na universidade mostra que eles estão ainda menores do que os encontrados nas regiões mais distantes da Amazônia, e a gente não sabe aonde isso vai levá-los. Suas populações parecem estar diminuindo também, como aconteceu com seus colegas de bando, que acabaram desaparecendo daqui. Ainda permanece um desafio entender se essas populações serão viáveis a longo prazo”, explica o ornitólogo, enquanto termina de fincar a última estaca da rede de neblina. Essa ferramenta, utilizada para a captura de aves e morcegos em pesquisas científicas, é composta por fios muito longos e finos, praticamente invisíveis, que ficam presos a estacas com poucos metros de altura. Serve para prender aves de sub-bosque – aquelas que voam baixo. É usada para monitorar e liberar os animais sem provocar danos.

Stefano, que cursa doutorado na Universidade Federal do Amazonas, conhece bem os hábitos e costumes do Glypho, e por isso deixa todo o material pronto antes mesmo de o dia raiar. Só que, no amanhecer daquele dia, como previsto pelo pesquisador, nenhum exemplar da espécie ficou preso à rede montada. Nenhuma melodia pairou pelo ar. Enquanto Stefano observava a paisagem ao redor, com ouvidos atentos, era como se a Floresta emudecesse, se resignando ao chiado monotonal dos insetos, denunciando uma ausência tão tangível quanto o calor que se intensificava.

A ciência tem tentado traduzir em dados a angústia desses animais. Em um dos estudos mais importantes do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), publicado em 2021 na revista científica Science Advances, o biólogo checo Vitek Jirinec e seus colegas analisaram o maior conjunto de dados até o momento sobre as aves da Amazônia, representando 77 espécies não migratórias, de 1979 a 2019. Os pesquisadores se debruçaram sobre 40 anos de informações acerca da massa corporal de quase 15 mil pássaros e o comprimento das asas de mais de 11 mil, todos capturados e depois soltos em uma região distante uns 70 quilômetros ao norte de Manaus. O estudo mostrou que todas as espécies tiveram sua estrutura corporal alterada ao longo desse período, com o peso reduzido e, em muitos casos, asas que foram ficando mais longas. As análises revelaram uma redução de 5,4% a 10,5% no peso e um aumento de 6,3% a 12,2% no comprimento das asas.

A principal hipótese dos pesquisadores é que essas mudanças corporais são uma resposta aos desafios silenciosos que esses animais enfrentam em um ambiente cada vez mais quente e instável. Eles precisam ficar mais leves para armazenar menos calor e conseguir regular melhor a temperatura do corpo. Ao mesmo tempo, asas mais longas em um corpo mais leve permitem que eles voem distâncias mais longas gastando menos energia, o que é vantajoso em um local onde não há mais tanta segurança sobre a abundância de comida. “A estação seca é realmente estressante para os pássaros”, comenta Jirinec. No estudo, os pesquisadores viram que a massa dos pássaros diminuiu de forma mais significativa nos meses após períodos especialmente quentes e secos, o que acompanha a ideia de que os pássaros estão ficando menores para lidar com o estresse provocado pelo calor.

Biólogos há muito associam o tamanho do corpo das aves e de outros animais à temperatura do ambiente onde vivem. Em climas quentes é mais vantajoso ser pequeno porque permite ao animal se livrar do calor do corpo mais rapidamente e evita o hiperaquecimento. Em climas mais frios, vale a pena ser grande para conseguir armazenar mais energia e se manter aquecido. Por isso, é nessas regiões que vivem os pássaros maiores. “Acontece que adaptação genética provavelmente leva séculos para acontecer e consegue acompanhar mudanças mais suaves no clima. Mas, hoje, as mudanças no ambiente estão acontecendo em uma velocidade muito mais rápida do que as variações históricas não geradas por humanos, e as chances de que as aves consigam acompanhar esse processo são muito menores. Adaptação é um jogo arriscado, que demanda tempo. Um tempo que esses animais não têm. Mesmo com as alterações corporais observadas, estamos vendo várias espécies se tornarem cada vez mais raras, algumas a caminho de serem extintas”, diz o ornitólogo Mario Cohn-Haft, curador da coleção de aves do Inpa e uma das principais referências de aves da Amazônia central.

De fato, há vários estudos mostrando redução nas populações de diversas espécies de aves e outros mais-que-humanos por causa das mudanças climáticas. Em um dos mais recentes, publicado em junho de 2024 na revista Global Ecology and Conservation, pesquisadores acompanharam por 22 anos a densidade de diversas espécies de pássaros em duas regiões praticamente intocadas da Amazônia equatoriana e relataram um declínio significativo em quase todas. “As consequências da perda de aproximadamente 50% da abundância populacional são provavelmente substanciais e podem resultar na extinção local de espécies raras, interações de espécies alteradas e organização social, bem como no declínio da função ecológica e da integridade biótica desses ecossistemas de floresta tropical”, diz o artigo.

As melodias da urgência

Mudanças morfológicas e comportamentais em decorrência do aquecimento global não são exclusividade dos pássaros amazônicos. Estão ocorrendo em várias regiões do planeta, com as mais variadas espécies e das mais diferentes e preocupantes formas. Em um estudo publicado em abril de 2024 na revista científica Proceedings of the Royal Society B, a pesquisadora Eleanor Hay e seus colegas, da Monash University, em Melbourne, na Austrália, observaram que as mudanças no tamanho corporal de 163 espécies de aves da costa australiana, decorrentes do aquecimento global e da fragmentação de seus habitats, estão impactando a principal ferramenta de comunicação desses animais: o canto. A frequência da vocalização dessas aves está ficando mais aguda, alterando os “repertórios” sonoros das florestas que há séculos orientam suas rotinas.

Já o grupo de pesquisadores liderado pelo holandês Jan A. van Gils, que vem observando por anos o Maçarico-de-papo-vermelho, ave migratória de bico fino e patas esverdeadas, descobriu que a aceleração do derretimento da neve no Ártico, onde esses animais depositam seus ovos, está descompassando o ciclo reprodutivo das aves, resultando em filhotes menores e menos preparados para a migração. Com a diminuição do tamanho do corpo, os pássaros não apenas perdem a resistência necessária para viagens longas, mas também enfrentam dificuldades em encontrar alimento nos trópicos. Publicado na revista Science em 2016, seu estudo foi um dos primeiros a demonstrar como a redução do tamanho corporal devido às mudanças climáticas pode diminuir diretamente as chances de sobrevivência de uma espécie.

Há ainda outras dezenas de estudos feitos com peixesinsetosVeados, roedores e outros mais-que-humanos mostrando padrões semelhantes de alterações corporais significativas e de redução de populações em curtos períodos de tempo por causa da pressão do aumento das temperaturas globais. Em outubro de 2024, um extenso relatório da organização não governamental WWF denunciou o que chamou de um “declínio catastrófico” de 73% no tamanho médio das populações de vida selvagem em apenas 50 anos. São anfíbios com maior risco de morrer desidratados, roedores que sucumbem ao calor excessivo e à dificuldade de conseguir alimento, filhotes que nascem frágeis e com menos chance de sobreviver. E há também aqueles que até dão um jeito de se manter vivos, como o Arapaçu-bico-de-cunha, mas que para isso precisam reaprender, todos os dias, a superar os desafios de um mundo mais quente.

Um canto de resistência

Depois de horas de espera paciente, quando o sol já começava a baixar, Stefano Avilla finalmente escutou o som que aliviou as linhas de expressão estampadas em sua testa: um canto breve e trêmulo, vindo de algum ponto distante na Floresta Amazônica de Manaus. Era o Glypho, com seu inconfundível e estridente cantarolar. Por um momento, aquele fragmento de Floresta pareceu acordar, respondendo ao chamado da pequena ave que insiste em habitar um território cada vez mais hostil. O ornitólogo não chegou a encontrar o pássaro. O som de sua presença logo se dissipou, engolido pelo barulho da avenida que, apesar de distante, invade a mata.

Cada vez que empresta suas melodias para a Floresta, o Glypho resiste. E ao resistir se soma àqueles que, diante do colapso, não representam um sinal de vitória, mas de adaptação forçada. É uma adaptação incerta, custosa, que deixa marcas profundas em seus corpos. Cada canto seu é, ao mesmo tempo, um ato de sobrevivência e um grito de socorro, sinalizando que a Floresta não quer sucumbir. Porém, a ciência mostra que essa sinfonia está perdendo sua potência a cada fração de grau que o planeta aquece. Mostra que, em um futuro próximo, a Floresta pode acordar muda.

Fonte: SUMAÚMA 

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