Pássaros amazônicos estão encolhendo? Estudo investiga impacto das mudanças climáticas na floresta mais biodiversa do planeta
Pelo menos 77 espécies de pássaros vêm sofrendo alterações em suas silhuetas: corpos mais leves e asas ligeiramente mais longas.
25 de setembro de 2025
Diego Oliveira
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Foto: Reprodução/Cameron Rutt
Há algo silencioso acontecendo nas profundezas da Amazônia. Em meio às matas primárias úmidas, onde a luz mal chega ao chão e o tempo parece deslizar suavemente entre as copas centenárias, milhares de pássaros estão encolhendo. Pelo menos 77 espécies vêm sofrendo alterações em suas silhuetas: corpos mais leves e asas ligeiramente mais longas.
Os dados, obtidos ao longo de mais de quatro décadas de monitoramento, lançam um alerta sobre como o aquecimento global está remodelando a vida até nos recantos mais intocados do planeta. Eles estão reunidos no artigo ‘Variação fenotípica em uma ave do sub-bosque neotropical causada por mudanças ambientais em uma paisagem amazônica em processo de urbanização’.
O fenômeno com os pássaros foi identificado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTIC), em Manaus. Desde 1979, o projeto, idealizado com a participação do ambientalista Thomas Lovejoy, acompanha aves em uma área de 43 quilômetros quadrados de floresta conservada.
A equipe do Portal Amazônia enviou a pesquisa para o ornitólogo Mario Cohn-Haft, pesquisador do Inpa, que analisou e explicou o que realmente está acontecendo com as aves da região amazônica.
“Os resultados vêm de um estudo feito aqui perto de Manaus. São muito autênticos e relevantes para a nossa região. Não é algo observado do outro lado do planeta, é aqui. E temos um histórico de quase 50 anos que permite comparar o tamanho e a abundância desses animais ao longo do tempo”, disse.
Pássaros com corpos mais leves e asas maiores
As mudanças são sutis, mas estatisticamente sólidas. Segundo Cohn-Haft, ao analisar indivíduos da mesma espécie capturados com décadas de diferença, os cientistas perceberam redução no peso e, em algumas aves, alongamento das asas.
“Não é algo visível a olho nu, mas são diferenças reais”, destacou o pesquisador. “O peso diminuiu em média alguns pontos percentuais e, em certas espécies, as asas ficaram mais compridas”.
A interpretação mais provável, segundo ele, é que essas transformações refletem adaptação a um clima mais quente. A regra biológica é clara: em ambientes frios, animais tendem a ser maiores para reter calor; em climas quentes, corpos menores dissipam melhor a temperatura.
Por que as asas dos pássaros cresceram?
O alongamento das asas sugere outro desafio: a necessidade de se deslocar mais em busca de alimento e abrigo.
“Muitas espécies de pássaros da Amazônia são sedentárias, defendem pequenos territórios e fazem voos curtos”, explicou Cohn-Haft. “Se agora elas apresentam asas mais longas, é um indício de que os recursos estão se tornando menos previsíveis, obrigando os animais a percorrer distâncias maiores”, contou.
O especialista cita a variação extrema do nível dos rios como exemplo do ambiente mais instável. No Rio Solimões, onde recentemente estudou maçaricos migratórios, observou praias submersas por um volume de água nove metros acima do registrado na mesma época do ano anterior.
“Esses contrastes, recorde de seca em um ano, cheia excepcional no seguinte, refletem a volatilidade climática que também impacta os pássaros florestais”, disse.
A constância ameaçada do microclima amazônico
Para entender a gravidade das mudanças, é preciso conhecer a estabilidade do chamado microclima amazônico. Dentro das matas de terra firme, a luz é reduzida a menos de 2% do que incide nas copas; a umidade roça os 100% o ano inteiro, e a temperatura permanece praticamente constante, faça sol ou chova.
Esse ambiente previsível favorece uma biodiversidade extraordinária, sustentada por espécies altamente especializadas. Há aves que caçam apenas no verso de folhas vivas, outras que procuram insetos em folhas secas presas a cipós. Essa diversidade só existe porque os recursos sempre estiveram disponíveis de forma estável.
Quando o clima rompe essa constância, com calor extremo, chuvas fora de época ou secas severas —, o equilíbrio se abala. A abundância de insetos e frutos varia, obrigando animais especializados a mudar hábitos, e até sua forma física.
Fragmentação e mudanças globais
As alterações observadas não resultam de desmatamento direto ou poluição local, mas de um fenômeno planetário. “O clima está mudando em todo lugar, inclusive no coração da floresta”, resumiu Cohn-Haft.
Ele lembra que espécies típicas de áreas mais preservadas são as mais afetadas, tanto em número quanto em tamanho corporal. A constatação reforça que os efeitos do aquecimento global não se restringem a ambientes degradados: alcançam até regiões aparentemente intactas.
Um futuro incerto
Os dados obtidos pelo Inpa evidenciam que o aquecimento global deixa marcas profundas até nos organismos mais adaptados à estabilidade amazônica.
A floresta, que abriga a maior diversidade de aves do planeta, está se tornando um campo de provas para a resistência da vida diante de um clima cada vez mais imprevisível.
“Não estamos falando de decisões que os bichos tomam de um dia para o outro, mas de respostas evolutivas a condições que mudam rápido demais”, alerta Cohn-Haft. “Se até as aves dos lugares mais remotos estão encolhendo, é um sinal de que o impacto das mudanças climáticas chega a todos os cantos”, finalizou o especialista.